— Nossos passos vêm de longe — salienta a escritora gaúcha Lilian Rocha, 53 anos, de Porto Alegre, ao falar sobre o legado deixado pela escritora, compositora, poetisa e catadora de materiais recicláveis Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, best-seller da literatura nacional que completou 60 anos em 2020.
Autora de títulos como Menina de Tranças e Negra Soul, Lilian é uma entre as 180 mulheres negras cujos escritos integram o livro Carolinas: A Nova Geração de Escritoras Negras Brasileiras, lançado em abril pela editora Bazar do Tempo. A obra é fruto do processo formativo promovido pela Festa Literária das Periferias (Flup), iniciativa vencedora da categoria Fomento à Leitura do Prêmio Jabuti de 2020, em alusão aos 60 anos de Quarto de Despejo.
Organizadas em oito grupos de orientação, as 180 herdeiras de Carolina, oriundas de todas as regiões do país, receberam mentoria de nomes como Alexandre Faria, Ana Paula Lisboa, Cristiane Costa, Eduardo Coelho, Eliana Alves Cruz, Fred Coelho, Itamar Vieira Jr. e Milena Britto ao longo de 15 semanas de formação. Dividida também em oito partes, uma para cada grupo de orientação, a obra traduz a diversidade da literatura produzida por mulheres negras por meio dos mais de 200 textos que transitam entre conto, crônica, diário e relato autobiográfico.
De acordo com o organizador da publicação, o escritor e cofundador da Flup Júlio Ludemir, não é só na escrita que a pluralidade se fez presente: unidas por sua negritude, as mulheres cujas palavras dão vida ao livro ocupam os mais diversos espaços sociais — como as 20 catadoras de materiais recicláveis, algumas analfabetas, que assinam a obra ao lado de 68 acadêmicas com títulos de Mestrado ou Doutorado.
— Todas essas mulheres traziam uma Carolina muito perto de si — revela o organizador. — O livro está tendo uma aceitação muito interessante, justamente porque colocamos essas 180 mulheres negras para dialogar com milhares de outras que não tiveram um espelho para se enxergar. A literatura é também um espelho, como foi um espelho a relação que essas autoras desenvolveram ao longo do processo formativo — avalia, revelando que os encontros promovidos pela formação extrapolaram o âmbito formal, transformando-se também em espaços de escuta e acolhimento.
Carolinas daqui
A escritora gaúcha Fátima Farias, 60 anos, também compõe a nova geração de Carolinas dispostas nas 560 páginas da publicação. Moradora da comunidade Bom Jesus, na Capital, a autora de Mel e Dendê considera-se uma verdadeira filha de Carolina Maria de Jesus.
Sem conseguir se reconhecer no perfil hegemônico da literatura feminina brasileira — branco e de classe média, como descreve —, Fátima revela que só enxergou seus escritos como literatura quando foi apresentada à obra da escritora mineira, há cerca de 10 anos. Hoje, como escreve no livro recém-publicado, Carolina lhe "visita todos os dias, como um raio de Sol de esperança".
— Quarto de Despejo fez 60 anos, mas nós (mulheres negras da sua geração) nem sabíamos da existência de Carolina Maria de Jesus. (...) A isso eu só posso chamar de racismo — relata Fátima. — Carolina deixou tantas filhas, que agora existem Carolinas brotando do chão. Eu falo de Carolina Maria de Jesus para a minha neta, a minha neta vai para o colégio e fala de Carolina Maria de Jesus para outra menina, e isso dá frutos.
Nesse sentido, a própria entrada de Carolinas: A Nova Geração de Escritoras Negras Brasileiras no mercado representa um marco para a inclusão de cada vez mais mulheres negras no circuito da literatura nacional. Segundo Lilian Rocha, o caminho rumo à publicação tende a ser mais difícil quando as palavras são escritas por uma mão preta, mas este cenário pode estar começando a mudar:
— A gente sabe que o mercado editorial é, majoritariamente, branco, masculino, de classe média e do eixo Rio-São Paulo. As mulheres negras sempre escreveram, mas não conseguiam chegar nesse mercado. A partir do momento em que nós temos 180 escritoras negras em Carolinas, e escritoras com um grande potencial, abre-se a porta para que elas possam continuar publicando.
CAROLINAS: A NOVA GERAÇÃO DE ESCRITORAS NEGRAS BRASILEIRAS
Várias autoras
Bazar do Tempo, 560 páginas, R$ 60