Das angústias de um passado recente à devastação de um futuro plausível: o novo livro de Daniel Galera, O Deus das Avencas, chegou às livrarias na semana passada trazendo três novelas caleidoscópicas. Há angústias, perdas, barbárie, pontes para alianças e, ainda, a incapacidade de fuga. Além de sua prosa realista, de obras como Barba Ensopada de Sangue e Mãos de Cavalo, o escritor agora trabalha também com gêneros especulativos — a ficção científica e o pós-apocalíptico.
Após seu último livro, Meia-Noite e Vinte, de 2016, Galera sentia que o modelo de romance realista já não tinha a mesma potência para abordar questões do presente como em seus trabalhos anteriores. O escritor, então, viu uma oportunidade para explorar os moldes narrativos da literatura de gênero, como ficção científica, horror, fantasia e pós-apocalíptico, os quais sempre gostou de acompanhar, mas que nunca teve segurança para enveredar.
— Nos últimos anos, percebi que a ficção científica e gêneros semelhantes fornecem mais possibilidades interessantes para tratarmos do presente. Não que isso tire alguma relevância da literatura realista. Acho que ainda segue relevante, só saiu um pouco do centro do meu palco — explica Galera.
O escritor começou a desenvolver várias histórias para um possível livro de contos, chegando a ter seis ou sete argumentos. Conforme o trabalho avançou, três dessas histórias começaram a se impor, ganhando maiores dimensões e, no final, compondo O Deus das Avencas.
Eleições
A primeira novela é a que dá título ao livro. A narrativa se passa durante o final de semana das eleições presidenciais de 2018. Lucas e Manuela se fecham em seu apartamento em Porto Alegre após ela sentir as contrações que anunciam a vinda do primeiro filho. O casal progressista se desconecta do mundo e das notícias, o que inclui o sinal da internet. Querem permanecer assim até a hora de ir para a maternidade.
Contudo, o processo se torna mais demorado do que o previsto. A expectativa de um momento de felicidade é acobertada pela incerteza, que só cresce hora a hora, tanto pelo destino deles quanto pelo resultado das eleições. Enclausurados e aflitos, sofrem com duas angústias — interna e externa. Uma atmosfera de inquietude e claustrofobia permeia essa primeira narrativa do volume. Embora ainda trabalhe com a prosa realista contemporânea de Galera, a sensação é de que um apocalipse está prestes a acontecer. Isso se os personagens já não estiverem em um.
— A ideia de escrever essa história tem a ver com os dias e semanas que antecederam aquela eleição. Pensar nas ansiedades e sentimentos que estavam envolvidos. O casal está tendo seu primeiro filho, promessa de futuro e esperança, mas pressente o resultado da eleição, que o país deles vai entrar numa fase de retrocessos e ameaças — observa o autor.
Nas três novelas Galera é sensorial e imagético em sua escrita. A primeira história traz descrições primorosas de banalidades do cotidiano e suas inconveniências, como quando Manuela tenta utilizar um aplicativo gratuito para monitoramento das contrações (“mas a versão gratuita tem recursos limitados e ela não consegue fazer com que os anúncios parem de pipocar na tela”).
Em Tóquio, segunda novela do livro, podemos sentir esses momentos a cada protocolo sanitário pelo qual os personagens precisam passar, com sanitizações e verificação de chip de vacina. A história se passa daqui a algumas décadas, no futuro, em um mundo que sofre com o aquecimento global, além de desastres, crises e pandemias. Sair de um ambiente refrigerado é insuportável por conta do calor. Também o uso de máscara é obrigatório, por causa dos patógenos presentes no ar.
É um futuro convincente e, de certa forma, uma moldura do que poderemos viver lá na frente em decorrência do aquecimento global. Galera teve inspiração no livro Food or War, de Julian Cribb, que fala sobre a possível escassez de alimento acarretada pelas mudanças climáticas, além de projetar soluções para evitar um desastre maior — a obra aborda o conceito de agricultura urbana, como aquaponia (praticada pelo protagonista da novela), combustíveis biológicos, entre outras possibilidades
Tóquio se passa em São Paulo, protagonizada por um homem solitário, que cultivava uma relação distante com sua mãe, uma bilionária amoral. Um dos cenários é uma terapia de grupo, em que os participantes falam de familiares que tiveram consciências transplantadas para os mais distintos dispositivos. A finalidade era prolongar a vida, mas a experiência fracassa. Resta aos parentes lidar com aquela forma de existência.
Já a terceira novela, Bugônia, avança ainda mais no tempo. É ambientada em uma comunidade pós-apocalíptica, que vive em simbiose com a natureza, em especial com as abelhas. A protagonista aqui é Chama, uma jovem curiosa e conciliadora. É ela quem representa um dos principais mantras do local: aliança. Até que a paz dos habitantes é perturbada por ameaças externas e uma visita acidental.
A trinca que compõe O Deus das Avencas foi trabalhada por Galera para que fossem histórias independentes, sem a obrigação de serem lidas em conjunto. Porém, as três novelas podem integrar um mesmo mundo, com temas que dialogam entre si. Por exemplo, a primeira história trata da nossa incapacidade de fugirmos de nosso entorno social e político. Tóquio relata a impossibilidade de fuga do corpo. Já Bugônia aborda quem escapa do planeta.
— Uma maneira de ver isso é pensar nelas como três histórias sobre a nossa incapacidade de fugir — aponta.
Entrevista com Daniel Galera
Como foi o processo de construção de O Deus das Avencas? Li que você chegou a enfrentar um bloqueio criativo por um tempo. Como você superou esse momento e chegou a esse formato de três novelas?
Meia-Noite e Vinte (seu livro anterior, de 2016) foi difícil de escrever, pois tentava absorver tudo que estava em volta ao mesmo tempo. Desde os tumultos políticos de junho de 2013 até noticiário sobre mudança climática. Um livro que saiu com uma narrativa bastante fragmentada. Foi difícil terminar, e acho que o livro manifesta essa dificuldade, nas suas histórias e assuntos. Estava com uma dificuldade para escrever uma literatura realista contemporânea. Teve dificuldade de dar conta de todos os acontecimentos simultâneos e as transformações de presente. Tinha uma sensação que o modelo do romance realista já não tinha tanta potência de abordar as questões do presente quanto sentia nos livros anteriores.
Logo depois da publicação, fiquei de dois a três anos sem ter ideias que eu achasse valer a pena perseguir, muito menos chegando a uma conclusão de que tipo de linguagem, de forma na narrativa achava que ainda valia a pena de falar das questões do presente. Talvez tenha sido uma crise criativa, mas hoje já vejo como um momento de investigação, de encontrar de novo o assunto e a forma que eu queria.
A partir de 2018, apareceram algumas ideias que eu achava que valia a pena escrever. Uma vontade, pela primeira vez, de explorar os moldes narrativos da literatura de gênero, como ficção cientifica, horror, fantasia, pós-apocalíptico. São gêneros que sempre gostei de ler, mas nunca me senti seguro em escrever. Nos últimos dois ou três anos, percebi que a ficção científica e outros gêneros semelhantes sejam mais adequados, ou forneçam mais possibilidades interessantes no momento, para tratarmos do presente. Não que isso tire alguma relevância da literatura realista. Acho que ainda segue relevante, só saiu um pouco do centro do meu palco. Senti vontade de alargar o tipo de história que eu estava disposto a desenvolver.
Quando me dei conta disso, comecei a desenvolver várias histórias. Achei que seria um livro de contos. Cheguei a ter uns seis ou sete argumentos. Conforme o trabalho avançou, três dessas histórias começaram a se impor, e foram as que terminaram em O Deus das Avencas. Foi ficando claro no processo de trabalho que iam ser textos mais longos. Aí em algum lugar no meio do caminho percebi que queria ter essa trinca de novelas.
Nas três novelas, os protagonistas têm relações distintas com os seus familiares. Lucas e Manuela não eram assim tão próximos de seus pais. Manuela mais por divergências políticas, e o Lucas mais por falta de identificação. O protagonista de Tóquio recebe migalhas de atenção da mãe, que sempre foi muito distante. Já Chama, da terceira novela, é bem desprendida. Ela é criada solta na comunidade. Que tipo de conceito de família você quis trazer em Bugônia?
Quis colocar a ideia de que família pode ter muito mais variedades e versões que essa ideia de família, que foi um pouco propagada por essa direita conservadora que está tão forte no Brasil e no mundo todo. Umas das grandes bandeiras desses grupos é proteção da família.
No entanto, é um conceito que envolve valores bastante restritos. Eles consideram que toda família fora desse modelo seria uma aberração, uma perversidade que precisa ser combatida, o que é uma coisa horrorosa. Tenho uma perspectiva de que família é uma junção de pessoas com parentesco de sangue ou não, que tem certa liberdade nessas pontes de afeto.
Não temos que pensar em família como aquela tradicional dos conservadores. Para a comunidade de Bugônia, família são laços de afeto, proteção ou mentoria, que independe do gênero ou sangue. Mais plástica e espontânea, onde o que importa é o laço estabelecido.
A mãe (personagem sem nome) em Tóquio é complexa e intrigante. Houve alguma inspiração em especial? O que você queria trazer com ela?
A mãe é nitidamente inspirada nesses bilionários investidores que ocupam o espaço não só na mídia e na opinião pública, como também no acumulo de capital e para onde esse dinheiro é direcionado no mundo de hoje. Estamos falando de gente como Elon Musk, Jeff Bezos, Bill Gates e até figuras mais sombrias como Peter Thiel, criador do PayPal, que é muito associado à extrema-direita.
Eles são personagens caricatos às vezes, pelo menos na imagem que recebemos deles através da mídia. Eu queria que a mãe do protagonista de Tóquio fosse uma dessas figuras. Imaginei uma mulher brasileira que se tornava uma capitalista de risco, bilionário, no Brasil. A gente pode pensar no Eike Batista, como exemplo.
Ela acaba sendo um pouco caricata, um gênio do mal. Mas acho verossímil, pois essas figuras existem. São poucas, mas acumulam uma riqueza superior a 70% do resto das pessoas. A mãe é amoral, pois o o negócio dela é acelerar a acumulação de riquezas e o avanço das tecnologias ao máximo para transcender essa humanidade, se libertar das garras desse planeta, do próprio corpo.
Esses bilionários operam dentro de uma lógica que parecem computadores, gerenciando uma quantidade imensa de recursos e influenciando como todas as pessoas vivem. Eu me pergunto o quanto esse dinheiro que essas pessoas investem, seja construir foguetes para ir a Marte ou construir tecnologias que vão nos tornar “imortais”, se eles pegassem toda essa energia, disposição e dinheiro para investir numa agricultura viável, sem pesticidas, ou proteção da natureza ou energia limpa, estaríamos melhor servidos. Isso se eles não distribuíssem suas riquezas mais diretamente. São questões que a sociedade tem direito de fazer.
Bugônia apresenta dois personagens com pensamentos antagônicos: embora preze pela aliança e equilíbrio, para a Velha interessa mais o presente, ela vive pelo agora, enquanto Alfredo se norteia pela leitura e memória, busca o passado para entender o presente e antecipar o futuro. Contudo, Alfredo vai para um lado obscurantista, da barbárie, praticamente uma alegoria da religião. Que dicotomia você quis trazer com esses dois?
Há problemas nessas duas posições. Embora o estudo da história tenha a importância para evitar erros, a gente vê que ela também é muito utilizada para fins nefastos. É uma faca que pode cortar para os dois lados. Precisamos da história, mas também precisamos de educação e interpretação. Essa ideia de viver sempre no presente nos aproximaria de uma cultura mais simples, mais relacionada aos animais, mas muito mais imediata, sem registro verbal das coisas. Nenhum dos extremos é sustentável.
No fim, a Chama aproxima as duas coisas. Não quis colocar uma tese acabada sobre essas questões, mas me interessa em que medida se pautar pelo passado, em que medida a gente precisa estar abertos de uma forma mais maleável ao presente e ao futuro. Talvez estejamos em um momento da história em que estar maleáveis às visões do futuro ainda não experimentadas. A procura da simplicidade pode fazer a gente ter uma relação melhor com o meio ambiente. São posições que acredito.
Chama é uma personagem que é curiosa e, no fim, conciliadora. Que passa por cima de possíveis ressentimentos para reunir seu entorno em um objetivo maior e mais urgente. Uma das palavras-chave de Bugônia é aliança. A novela não aponta para um possível caminho a ser tomado na sociedade e, talvez, até na política?
Eu gostaria que sim. Não existe uma prescrição muito clara do que fazer, mas há um sentimento expresso na história da Chama, que acho que é um sentimento que eu gostaria que pudesse ser aplicado na sociedade e na política agora. Acho que a ideia legal de aliança, que se fala na comunidade, é que não pressupõe a gente incorporar ou mudar a cabeça ou a posição dos outros. É percepção de que trabalhando junto, dividindo tarefas, às vezes simplesmente tolerando o outro, nós vamos para frente.
Vivemos em uma sociedade cada vez mais polarizada. Parece que a única forma de ir em frente é eliminando, calando ou oprimindo o oponente. Às vezes podemos pensar em soluções que são alianças. Não precisa mudar a vida daquela pessoa, os sonhos ou convicções dela, mas se estabelecem pontes. Por mais que possa doer aceitar aos outros, é uma alternativa melhor que a eliminação, de torná-lo invisível, o que tem crescido na política. Então, tem ali uma chave que poderia ser mais saudável para nós tentarmos superar, não virar uma guerra de todos contra todos.
Acho que o Brasil está num rumo bem perigoso, com todo aparelhamento militar do governo. Tudo isso coloca possibilidades bastante assustadoras para um futuro próximo. Todos que discordam disso precisam estar unidos no ano que tem aí pela frente para não permitir que isso se repita. Acho que em algum momento alianças são necessárias, e a gente vai ter que saber fazê-las. O contrário são passos diretos à barbárie. Precisamos aprender a ir em frente juntos, de algum jeito.