Para Daniel Galera, não existe ficção pura: a realidade sempre vai permear a escrita. E é justamente essa sensação de algo real – e também de sufocamento, quase claustrofobia – que permeia as páginas de Meia-Noite e Vinte (Companhia das Letras, 208 páginas, R$ 34,90), romance lançado recentemente pelo escritor.
O sufocamento se explica um pouco pela referência ao quente e abafado verão de 2014 em Porto Alegre, no início da obra, mas também tem muito a ver com o universo pessoal dos protagonistas. Já a crença de que tem algo de "verdadeiro" ali se pauta tanto por questões pontuais (o tal verão, a greve dos ônibus na cidade, os protestos de junho de 2013) quanto pelo fato de que o autor, assim como os personagens da história, fez parte da geração que, no final dos anos 1990, buscou revolucionar a literatura escrevendo na internet.
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Na trama, três amigos da época da faculdade se reencontram após muitos anos para o velório do quarto integrante do grupo, o escritor Andrei, mais conhecido como Duque, assassinado durante um assalto no auge da fama de jovem revelação da literatura. A partir daí, a bióloga Aurora, o publicitário Antero e o jornalista Emiliano – que, uma década e meia antes, publicavam com Duque o zine eletrônico Orangotango – fazem um balanço de suas vidas.
Mas isso talvez seja simplificar demais a história. O romance é daqueles cujo enredo não se consegue resumir exatamente sem que se perca a essência. E a essência de Meia-Noite e Vinte tem a ver com possibilidades frustradas, o que poderia ter sido e não foi, ou que enveredou por um rumo inesperado. Como reflete Aurora já nas primeiras páginas, enquanto caminha pelas ruas de Porto Alegre e vê, no feed de notícias do celular, que Duque foi morto: "Foi provavelmente ali, durante aquela sucessão de instantes de perplexidade, que se encravou em mim a noção de que os dias que vivíamos eram o vestíbulo de uma catástrofe lenta e irreversível, ou de que a força, lei natural ou entidade que soprava vida em nossas expectativas, e com 'nossas' eu queria dizer as minhas expectativas, as de meus amigos, as da minha geração, começava a se exaurir".
Esse é o tom que permeia toda a narrativa, pela qual o leitor é guiado pelos três narradores-protagonistas – ora Aurora, ora Antero, ora Emiliano, cujas vozes e pontos de vista se intercalam nos capítulos do livro. Nas duas centenas de páginas que se seguem, aos poucos vamos conhecendo melhor esses interlocutores, sua antiga amizade, suas desilusões (profissionais, acadêmicas, sexuais, amorosas), sua melancolia e desesperança.
Relembramos (ou desvendamos), com eles, um pouco da geração que descobriu o potencial da internet, na época visto como revolucionário, e que se esbaldava com festas e muito sexo. Uma geração que vivenciou a euforia de um ambiente de estabilidade econômica nunca antes vivido, que via as possibilidades como infinitas, e que hoje depara, se não com o fim, pelo menos com a desconstrução – nas palavras do autor – dessas expectativas.
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Um livro que por vezes choca pela linguagem crua, forte, mas que também leva a refletir: como chegamos ao ponto em que estamos? E, principalmente, para onde vamos?
Festa da Uva
Embora a trama de Meia-Noite e Vinte se passe quase toda em Porto Alegre (com exceção de algumas cenas de Aurora, que mora em São Paulo), a Serra faz uma espécie de "participação especial" no livro.
Além de uma rápida citação de Caxias do Sul, há um trecho em que Emiliano descreve a mulher de Antero, Giane, como "uma mulher imponente, exemplar daquela beleza padronizada da Serra Gaúcha, estilo princesa da Festa da Uva", loira e com "grandes olhos italianos e azuis".
Geração internet
Em Meia-Noite e Vinte, Aurora, Emiliano, Antero e Duque criaram, quando ainda eram alunos da UFRGS nos anos 1990, um fanzine eletrônico, o Orangotango – qualquer semelhança com o CardosOnline, que Daniel Galera e companhia editaram de 1998 a 2001, não é mera coincidência. A época, na realidade e na ficção, era de experimentações:
– Usávamos a internet como meio de publicação, achávamos que ela dominaria a cena literária, criando novas formas de se expressar – diz Galera, que também estudou na UFRGS e integrava a trupe do CardOsonline ao lado de André Czarnobai (Cardoso), Guilherme Caon, Clarah Averbuck, Daniel Pellizzari, Hermano Freitas, Marcelo Träsel e Guilherme Pilla.
No romance, além de textos, distribuídos a milhares de assinantes via e-mail, a turma do Orangotango, comandada por Duque, também produzia alguns vídeos, citados como ""os primeiros virais". Vídeos com um quê de pornôs, já que Antero, na juventude, adorava aparecer nu e ser filmado com namoradas – ia sugerir aos mais puritanos pular a descrição de um vídeo, mas essas cenas não são necessariamente as mais fortes da história.
Voltando à questão da internet como ferramenta literária, Galera avalia que hoje os tempos são outros:
– Há um domínio das redes sociais, mas elas são usadas mais para divulgação, não tanto para a publicação. Os jovens escritores querem publicar livros, em papel ou digital.
Além disso, acrescenta, há hoje uma maior profissionalização e um cenário mais favorável, com o crescimento, por exemplo, da figura dos agentes literários. O escritor lembra ainda que os novos talentos que estão surgindo já cresceram sabendo se comunicar via mensagens instantâneas e YouTube.
– Já me sinto velho na posição de tentar entender (esses novos meios), mas sou um curioso. É uma realidade nova, um momento distinto – diz Galera, 37 anos.
"Os livros são pessoais, mas não autobiográficos"
Meia-Noite e Vinte pode ser visto como alegoria de uma geração, mas é também um dos livros mais pessoais de Daniel Galera. Muito mais do que seu romance anterior, o premiado Barba Ensopada de Sangue (2012) – traduzido para mais de dez países –, em que a ligação com o real se restringia à visão do escritor sobre Garopaba (SC), onde havia morado.
– Os dois livros são pessoais, de maneiras diferentes, ligados a experiências vividas em diferentes momentos da vida – diz Galera.
Desta vez, acrescenta, a inspiração em fatos e pessoas reais é bem maior, por sua experiência no CardosOnline, por ter sido acadêmico da Fabico (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS), por morar em Porto Alegre. Entretanto, isso não significa que seja ele ou seus antigos colegas possam ser confundidos com os personagens:
– Os livros são pessoais, mas não são autobiográficos. São histórias inventadas, mas que não são muito diferentes do que poderia ter acontecido.
Galera acrescenta não acreditar que haja ficção isolada da experiência do autor: algum tipo de raiz na experiência pessoal sempre existe, da mesma forma que as visões de mundo de quem escreve acabam por permear a escrita. Além disso, não vê um limite definido o uso dessa realidade na ficção – vai depender de cada história, do que ela pede, sem forçar mas igualmente sem barrar. Geralmente, cria uma espécie de "realidade alternativa", imaginando como teria sido se tivesse seguido outra profissão, por exemplo, partindo de algo existente para algo que poderia ter existido.
Sobre a tensão presente em Meia-Noite e Vinte, ele explica que não é coincidência:
– Tentei captar a sensação de ansiedade, de sufocamento, de excesso de informação que as pessoas em geral estão vivendo, mas em especial a minha geração. Vivemos uma desconstrução constante das nossas expectativas, preceitos que eram dados como certo estão entrando em crise – analisa.