Uma fábula sobre a paixão. É assim que Leticia Wierzchowski descreve seu novo livro, Deriva (Editora Planeta, 288 páginas, R$ 56,90). No ano em que seu romance histórico A Casa das Sete Mulheres completa duas décadas de lançamento, a escritora porto-alegrense entrega mais uma obra para se somar à sua bibliografia, que já chega a 33 livros publicados. Lançado neste mês, o novo volume revisita o mundo ficcional da família Godoy, apresentado no romance Sal (2013), e aborda amores arrebatadores.
Baseando-se em estudos desenvolvidos por neurologistas, a autora ressalta que, quando uma pessoa se apaixona, ocorrem transformações neurais e hormonais no corpo — e compara o efeito transformador no cérebro ao de uma revolução social para um país.
— O livro é sobre a paixão, que quando acontece, transforma, derruba, faz fazer coisas que tu não farias sóbrio. A paixão é um vinho cujo efeito não termina tão facilmente. E não adianta querer se apaixonar, não é uma coisa eletiva, é um raio que cai em cima de ti e, quando cai, tu não tens como te livrar dele. O romance é sobre isso, um raio que cai e o que ele vai causar, a tempestade ao redor — define Leticia.
Com uma narrativa detalhista, Deriva retoma a história da família Godoy, que vive na ilha La Duiva (anagrama para La Viuda, nome de um farol no Uruguai, que se traduz como "a viúva") há mais de 200 anos. Um dia, nos anos 1990, uma moça sem memória surge do mar. Os habitantes acreditam que ela sobreviveu a um naufrágio na região e tentam descobrir o que teria acontecido. Com sua beleza, Coral chega e causa uma grande cizânia. Os Godoy viviam tranquilamente até que ela começa a ser motivo de brigas entre dois homens, Tiberius Godoy e Tomás Acuña (contratado para cuidar do farol da família), que se apaixonam por ela.
Inspiração
Deriva já estava praticamente pronto antes do lançamento de Estrelas Fritas com Açúcar (2020), revela a autora. A obra nasceu de uma conjunção de histórias, a partir do romance Sal, inspirado na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e no poeta chileno Pablo Neruda, que, durante o período em que viveu no exílio no Uruguai, fazia anagramas nos poemas para se referir a lugares, como Datitla para Atlântida.
Leticia salienta que o país da América do Sul tem uma das costas mais acidentadas do mundo, com incontáveis naufrágios ao longo dos séculos 18 e 19 — o que motivou uma família a criar uma empresa de salvamentos marítimos, conforme a mitologia da costa uruguaia, servindo de inspiração para a autora.
— Peguei os anagramas e criei um Uruguai imaginário. Me apropriei desses elementos para criar essa família que faz salvamentos marítimos e cuida de um farol. A história começa em Sal, termina, e agora começo uma nova história. Os livros dialogam, não são complementares, mas é uma nova geração da família Godoy — explica.
A poesia e a vida de Sophia iluminam a história. Sophia era de uma família portuguesa rica — seu avô era médico do rei D. Carlos — e morava em uma casa cujo jardim, atualmente, é o jardim botânico da cidade do Porto. Conforme Leticia, a poeta tinha um hábito curioso de se dirigir ao jardim e comer pétalas de rosa quando lhe faltava inspiração. Em Deriva, quando uma das personagens começa a se apaixonar, ocorre uma infestação da flor na ilha.
A história é também intercalada por comentários de Orfeu, personagem que, assim como na mitologia, morre tragicamente de amor em Sal. Orfeu ressurge na nova obra como um narrador, que faleceu e retornou a La Duiva.
Portanto, em Deriva, o realismo mágico toma novamente as páginas por meio de elementos míticos. A escritora destaca que a poesia de Sophia fala um pouco da "magia que costura nossa vida". Com ficções que transitam por diferentes universos, do passado histórico do Sul às raízes polonesas da autora, Leticia interessa-se também pelo mágico, presente em diversas de suas histórias, e por olhar a vida como se não fosse óbvia, permitindo ao leitor encantar-se.
— Às vezes, no mundo real, as coisas são até mais absurdas do que na ficção. Quase sempre, inclusive — pontua.
Duas décadas de um clássico
Completando 20 anos de lançamento, o livro A Casa das Sete Mulheres (2002) foi adaptado pela Globo e se tornou uma minissérie. A obra continua a orgulhar a autora e ainda não atingiu seu esgotamento: em janeiro, será adaptada para os quadrinhos. Além disso, em 29 de agosto, a série retornará ao catálogo do Globoplay.
— É uma obra que, provavelmente, se tudo andar bem, daqui a pouco se transformará em uma outra série. Muitas coisas estão acontecendo, a história não envelheceu, é uma história sobre protagonismo feminino, então tenho orgulho de trazer um pouco da força e do poder da mulher — destaca a autora.
O livro retrata as mulheres da família Bento Gonçalves em meio ao conflito dos Farrapos. Leticia lembra que as guerras sempre foram palco masculino, como se as mulheres "deixassem de existir". Na Guerra dos Farrapos, os homens lutavam e, às mulheres, cabia administrar.
— Quem cuidou foram as mulheres, mais do que nunca elas tiveram uma importância absurda. Entrar pela porta dos fundos da história me interessa e é uma das funções da literatura. Temos que circular muito por ela ainda, fico feliz com esses 20 anos, mas ainda está se desdobrando, as pessoas leem muito ainda — comemora.
Quanto às expectativas para o novo romance, espera que os leitores vivam a história e saiam dela transformados.
— Acho que a gente, quando lê um livro, sai um pouco da nossa vida para viver outra, o que já é um alívio por si só. Espero que seja muito lido e que, junto com Sal, possa se transformar talvez em um produto audiovisual, uma série. Até já comecei muito levemente um terceiro volume nesse país imaginário — adianta Leticia.