Por Ana Laura Malmaceda
Escritora e cineasta, doutoranda em Letras pela Universidade de Harvard
Gênero essencial da literatura, o romance de formação costuma ser protagonizado por meninos brancos, em geral europeus do século passado, que atravessam os ritos de passagem da infância para a vida adulta, deixando ao leitor algo do espírito de jornada no caminho. A violência do crescimento e sua intensidade tornam-se experiência compartilhada, salvando adolescências da alienação completa aos códigos do mundo que chamamos sem muita precisão de “adulto”. Vinco, terceiro romance de Manoela Sawitzki, toma emprestado esse roteiro, mas perturba o quadro normativo com uma protagonista que passa por uma transição particularmente complexa – de gênero, de cidadania, de formas de estar no mundo. Esse é o lugar de criação escolhido pela autora para representar o outro. Ponto de partida corajoso para os nossos tempos, assim como um projeto desafiador.
O corpo que se sabe desde cedo não pertencente às imposições de gênero se define sufocado em códigos estrangeiros, e dificilmente se forma sem que as próprias deformidades do patriarcado transpareçam e traumatizem sua expressão. Manu, protagonista do livro, tem um poder de tradução entre mundos oriundo dessa necessidade de sobrevivência. Inicialmente criada como um homem heterossexual, narra o processo de embrutecimento por trás da masculinidade, máscara que não comporta seu interior, até o desabrochar de sua identidade transexual. Sawitzki dá seu próprio nome à personagem, talvez como um ato de entrega, vontade de estar perto que pode ser lida numa prosa madura e profunda, atenta aos sinais.
Não é uma novidade dizer que a economia afetiva que define o que é ser um homem existe num sistema de valores que precisa diferenciar corpos para que a comparação e ideal de perfeição concentrem-se no masculino, um aparato atrelado ao sistema de famílias nucleares e seu poder social. Existem, entretanto, formas de entender os efeitos desses valores, principalmente quando se está no lado favorecido. Ao traçar a perspectiva de Manu, é como se Sawitzki mostrasse ao leitor todas as camadas sensitivas dessa equação. O que emerge do exercício é um ponto de vista multifacetado da violência de gênero, capaz de enxergar as nuances do repúdio ao feminino e do autoritarismo, bases do machismo, em pequenos gestos.
Outro tema caro a Vinco é o exílio. Estrangeiro desde o berço, Manu segue em estado quase dissociativo enquanto perpassa a clandestinidade em Paris, a casa de família no Rio de Janeiro e o interior pernambucano de Sertão Verde, numa busca por raízes que se mistura com a tentativa de pertencimento ao próprio corpo. O leitor acompanha a criação de uma gramática própria para sobreviver ao binarismo e ao deslocamento, resistindo à esquizofrenia transfóbica que molda o mundo ao nosso redor. Seus pronomes mudam, seu endereço também. Mas o sentimento de solidão permanece durante quase todo o romance, resolvido, talvez, com a própria ponte entre escrita e leitor.
Micropolíticas, a fluidez do amor e a performance como estratégia de sobrevivência estão em constante tensão com a fobia e a violência que cercam Manu. Fazer dessa vida invisível algo sensível parece ser o motor da narrativa. Através dos olhos de Manu, é como se pudéssemos ver a realidade por detrás de famílias felizes em fotos de comerciais de margarina, que guardam em si uma hipocrisia atroz, baseada em papéis de gênero estritamente definidos, rigorosamente vigiados. Ao abrir o armário dessa personagem, Sawitzki é capaz de traçar um limite moral ao uso irrestrito da moral e dos bons costumes, tática tão comum num país apaixonado por homens violentos.
O espaço ficcional tem imenso poder. Dá nome ao que há por vir, muda as lentes da cultura, e cria uma experiência de intimidade dificilmente atingível. Talvez venha daí a força dessa narrativa, do cuidado como atenção. É impossível terminar a leitura sem pensar que Vinco é um marco na paisagem da literatura brasileira contemporânea, disruptivo a partir da lógica do feminino, das possibilidades do que Linn da Quebrada chama de mulheridade, conjunto de valores baseado na ética do cuidado. O conflito entre identidade e representação, questão cara ao século 21, encontra na prosa de Sawitzki um refúgio no qual a potência está justamente na escuta e na possibilidade de diálogo entre corpos, criando mais do que um romance bem construído. É uma brecha para pular e salvar a si próprio no outro.