Autor de mais de 15 livros de poesia ou ensaísticos, o rio-grandino Ronald Augusto, 60 anos, é um escritor que não dissocia a atividade criativa da reflexão. Paralelamente ao trabalho como poeta, pratica a crítica em diversas publicações, construindo uma obra que ao mesmo tempo pensa a linguagem escrita e faz uso desta para refletir sobre questões mais amplas – o racismo, a desigualdade, a condição contemporânea.
Seu novo livro, Crítica Parcial, reúne ensaios que, vistos no conjunto, mostram como esses temas se inter-relacionam. A um artigo sobre Oliveira Silveira (1941-2009), poeta e idealizador do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, por exemplo, segue-se outro sobre a incomunicabilidade da “poesia obscura”, por sua vez sucedido por outro sobre o leitor dos textos poéticos. E assim por diante, até chegar a uma compilação de entrevistas concedidas nos últimos anos.
A seguir, ele responde a questões enviadas por e-mail sobre suas escolhas parciais nesse constante exercício de reflexão que constitui a própria natureza de seu ofício.
Em mais de um trecho do livro, você aponta que certa poesia atual é fugaz e está ligada a um tempo de efemeridades, em que “o presente é contínuo”. Também aborda a limitação de espaço reservado à poesia contemporânea. Qual o papel da crítica e também da pesquisa nesse contexto?
Penso que, diante desse quadro espiritual e cultural extremamente vertiginoso, a atividade crítica deveria resistir a toda e qualquer tentação de tranquilizar o fruidor-leitor oferecendo-lhe modelos interpretativos totalizadores e/ou facilitadores. Isso parece ser contraintuitivo, pois o suposto caos exigiria alguma ordenação ou a expectativa de que o crítico cumprisse uma função de mentor, apontado saídas aos nossos dilemas, entretanto a crítica está fadada à precariedade e à parcialidade. O mais das vezes a crítica é retardatária; ela é segunda em relação ao fenômeno. Chega depois. O presente exige uma crítica, o quanto possível, câmera-na-mão, que reconheça os seus limites ao invés de disfarçá-los por meio de uma sobranceira e falsa posição judicativa.
A crítica é sempre parcial? Por quê?
A crítica é parcial, sempre. O título do livro é inspirado em uma afirmação de Baudelaire, que era um grande crítico literário e cultural. Talvez o poeta não tenha dito literalmente assim, mas a ideia em seu caroço é essa, nem mais nem menos. E o qualificativo comporta as seguintes acepções: parcial, porque a crítica – sem desconsiderar que é também um tipo de impossibilidade – diz o que é possível de ser dito sobre a coisa naquele momento, as lacunas serão preenchidas através de réplicas e tréplicas futuras; parcial, porque o sujeito da crítica, mesmo que não tenha consciência disso, assume uma posição fazendo um corte metonímico a propósito do seu objeto. O crítico se situa deste ou daquele lado. Mas esse lugar ocupado é provisório ou deveria ser. Leituras de objetos estéticos, mais do quaisquer outros, nos convidam a uma constante revisão de pontos de vista. Poemas, segundo Décio Pignatari, são seres de linguagem, eles não admitem solução.
O primeiro ensaio de Crítica Parcial aborda Oliveira Silveira. Não me parece uma escolha ocasional: trata-se de um poeta e ensaísta negro gaúcho de obra rica e trajetória singular, às vezes lembrado mais por seu ativismo. O livro dele que você analisa, Anotações à Margem (1994), no entanto, “talvez seja sua obra menos negra”, como você escreve. Por que essa escolha?
Em primeiro lugar porque Oliveira Silveira é um grande poeta. Em segundo lugar, porque escrever sobre o seu percurso criativo, indicando algumas características compositivas de sua linguagem, serve para situá-lo nesse debate contemporâneo de revisão crítica de cânones e prestigiamentos seletivos operados por quem está autorizado a falar pelo ou sobre o outro. Por que, em vida, Oliveira não recebeu a atenção merecida? Respondo com duas perguntas: 1) o sistema literário é um espaço infenso ao racismo antinegro?; e 2) a noção de “qualidade literária”, usada, muitas vezes, para obstar o ingresso de determinados grupos na sala de estar de literatura brasileira, não se aplica ao poeta Oliveira Silveira? Quando digo que Anotações à Margem é a obra menos negra de Oliveira não é porque nesse conjunto o poeta deixa de lado essa questão, pelo contrário, o tópico está ali, mas ele o transfigura de um modo mais irônico e dissimulado. Além disso, os outros breves poemas que integram o livro – e são muitos – avançam sobre imaginários diversos, a saber, o amor natural, a proximidade da morte, a nostalgia familiar, a repetitiva vida prosaica, enfim, assuntos clássicos. Tudo isso somado faz de Anotações à Margem um livro especial no percurso textual de Oliveira Silveira.
Você poderia, por favor, desenvolver a associação que faz da obra de Oliveira Silveira ao samba e o fato de ele “desprezar sem rancor a complexidade do literário”?
Há uma espécie de invariante temática na produção literária de todos os tempos e espaços, refiro-me à tópica da intertextualidade (a metalinguagem pode ser mencionada como uma variação disso). Isto é, estamos habituados a ler textos onde outros textos são referidos, onde versos alheios são citados, recriados, expropriados; o poema cuja temática é uma investigação sobre a poesia; o romance onde o personagem principal está escrevendo um romance. O poema sobre o poema é um dos assuntos da criação literária, e esse interesse é tão antigo quando as próprias formas poéticas. No samba isso também acontece. Há o samba que canta o samba enquanto gênero, que especula a respeito de suas determinações estéticas, ou mesmo filosóficas, mas me parece que aí a coisa é menos presunçosa. Não vejo na arte dos sambistas esses enjoamentos de classe que, por exemplo, no campo da literatura, transformam as citações ou a autorreflexibilidade em credenciais em vista de autorização para a circulação livre de alguns nos cenários do beletrismo. Ainda que não abdique de uma medida precisa de complexidade, a poesia de Oliveira Silveira não tem nada a ver com isso.
Quando a luta antirracista e as vitórias desejadas chegarão de fato no sistema judiciário, na saúde, na violência policial contra jovens negros, na violência contra mulheres negras e pessoas negras trans? Talvez o racismo tenha sofrido alguns golpes na literatura, no entretenimento televisivo, na moda, na cabeça de influenciadores digitais, na mentalidade de progressistas, entretanto – lamento atrapalhar o piquenique –, o racismo segue firme.
Em entrevista recente a GZH, o escritor Ignácio Loyola Brandão fez uma espécie de mea culpa afirmando que a geração dele (citou João Ubaldo Ribeiro, Raduan Nassar e Antônio Torres), a despeito da qualidade literária e de ter debatido problemas sociais importantes, pouco abordou o racismo. No seu livro, você discute “as condições de prestigiamento e apagamento seletivos de algumas vozes na sala de estar da literatura brasileira”. O quanto essas condições envolvem os temas abordados e a cor dos autores?
Acho que os narradores citados por Ignácio Loyola Brandão, e ele próprio, prestariam um enorme serviço ao Brasil e à literatura se discutissem o racismo desde o ponto de vista dos privilégios da branquitude, isto é, se eles, como brancos, também se reconhecessem marcados racialmente. A contraparte do apagamento e da violência direcionados aos negros é a facilidade e a empatia inerciais de que se beneficiam as pessoas brancas no jogo da estima social. A branquitude ainda é escassamente examinada. Não estou afirmando que escritores brancos não podem enfrentar o tema do racismo antinegro, estou apenas concordando com Sartre quando ele escreve que chegou a (ou já passou da) hora de o branco transformar seu solipsismo autocentrado em autocrítica, pois, de acordo com o filósofo, “o branco gozou durante 3 mil anos do privilégio de ver sem ser visto”.
Falar em “literatura negra” é algo redutor à medida que esconde as particularidades de cada autor, tendência ou movimento que se enquadre nesse rótulo, como você defende em mais de um momento do livro. Como é possível ultrapassar essa generalização na crítica e na pesquisa e assim entender melhor autores, tendências e movimentos?
O conceito de literatura negra, do meu ponto de vista, está em processo. A partir de que modelos ou de que marcadores eu situo esse ou aquele escritor como um legítimo representante da vertente? Nas décadas de 1980 e 90, os gestos de vanguarda do poeta Arnaldo Xavier (1948-2004) eram vistos com desconfiança por parte dos ativistas da literatura negra. Era como se experimentalismos ou rupturas formais não estivessem implicados ou não fossem genuínos em uma escritura negra. À época, os conteúdos sociológicos e políticos eram mais encarecidos na construção do conceito e na consecução dos textos criativos. Hoje, o viés combativo ainda tem força, mas observo que mais escritores e escritoras, através de seus poemas e narrativas menos convencionais, vêm alargando os limites do conceito. A ideia de uma literatura negra se constitui em uma espécie de intervenção de cunho antológico lato sensu, isso porque ela acaba fazendo as vezes de uma plataforma seletiva que retém em suas malhas valorativas apenas os textos daqueles escritores confirmadores do modelo ou conformados ao modelo.
No epílogo, Você se diz pessimista em relação às questões raciais no Brasil hoje. Por quê?
Sou pessimista porque, onde a coisa de fato aperta, como se diz em bom português, não há mudança significativa. É preciso não se iludir com certas situações que parecem ser decorrência do bordão “representatividade negra importa”, tais como mais participantes negros no BBB, o interesse das grandes editoras por “literatura antirracista”, a Maju Coutinho no Fantástico. Simbolicamente esses fatos ajudam. Mas eu me pergunto: quando a luta antirracista e as vitórias desejadas chegarão de fato no sistema judiciário, na saúde, na violência policial contra jovens negros, na violência contra mulheres negras e pessoas negras trans? Dados sobre a pandemia da covid-19 confirmaram o que já era esperado: a população negra e pobre foi a que mais sofreu em termos de mortandade e sequelas (econômicas, inclusive) da doença. Talvez o racismo tenha sofrido alguns golpes na literatura, no entretenimento televisivo, na moda, na cabeça de influenciadores digitais, na mentalidade de progressistas, entretanto – lamento atrapalhar o piquenique –, o racismo segue firme e não faltam episódios para comprovar que, além das margens do círculo das pessoas sensíveis e informadas, a realidade não é tão promissora.