“Com que direito vem conquistar o que é dos outros? (...) Sabeis que ides lutar com quem prefere morrer do que ser escravizado.”
Proferida por um personagem guarani na história em quadrinhos A Batalha, produzida por Fernanda Verissimo e Eloar Guazzelli e lançada neste mês pela editora Quadrinhos na Cia, a frase sintetiza os mais de 500 anos de luta dos povos indígenas da América do Sul, em defesa de suas terras e contra toda sorte de invasores — dos colonizadores europeus aos garimpeiros da Amazônia. Guardadas as proporções, também parece ecoar na resistência ucraniana à Rússia. Em outras palavras, eis uma HQ atemporal e universal.
A Batalha marca a estreia de Fernanda — neta de Erico Verissimo e filha mais velha de Luis Fernando Verissimo, nascida em 1965 — nos quadrinhos. Jornalista e tradutora com especialização em bibliografia e história do livro pela Universidade de Leeds, no Reino Unido, e doutorado em história moderna na Sorbonne, em Paris, ela estudou obras impressas nas missões jesuítico-guaranis (entre os séculos 16 e 18) como pesquisadora convidada da Biblioteca John Carter Brown, em Providence, nos Estados Unidos. No Brasil, organizou o volume Nicolas I: Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos (Editora da Unesp) e escreveu Impressões nas Missões Jesuítas do Paraguai (a sair nos próximos meses pela Brasiliana/Edusp).
A seu lado, Fernanda tem um dos mais experientes e premiados artistas gráficos gaúchos. Aos 59 anos, Guazzelli lançou recentemente as HQs Porto Alegre: Guia Inútil de Lugares Improváveis e A Casa Azul – Porto Alegre: Volume 2 (ambas pela Faria e Silva Editora) e adaptou, com arte de Rodrigo Rosa, o clássico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (republicado em 2021 pela Quadrinhos na Cia).
A dupla criou uma obra que alterna dois tempos narrativos, tendo como cenário o noroeste do Rio Grande do Sul. Em 1756, descontentes com o Tratado de Madri firmado alguns anos antes, determinando a cedência, pela Espanha a Portugal, de sete das 30 reduções fundadas por missionários jesuítas e guaranis entre os rios Paraná e Uruguai, os indígenas resolvem enfrentar os exércitos das duas coroas ibéricas. Inspiram-se em uma batalha ocorrida em 1641, a de Mbororé (também grafada como M'Bororé), quando seus antepassados expulsaram os paulistas que queriam escravizá-los.
Por sua vez, Fernanda e Guazzelli inspiraram-se nas gravuras de Da Diferença entre o Temporal e o Eterno, de Don Eusebio Nieremberg, para desenvolver o visual da HQ.
— Eu tive a oportunidade de ver os únicos dois exemplares sobreviventes desse livro, que foi impresso nas missões em 1705. Os dois estão na Argentina. Tenho cópias das gravuras e mostrei para o Guazzelli, que adaptou alguns detalhes e os bordou na história — conta Fernanda, que concedeu, por e-mail, a seguinte entrevista.
Por que contar a história do conflito entre o povo guarani e os invasores de suas terras?
Não há uma razão específica, é mais um interesse antigo — tanto meu quanto do Guazzelli — por conflitos e resistências que são tão importantes e ao mesmo tempo tão mal conhecidos no Brasil. Começamos esse projeto há alguns anos e, meio por acaso, por uma série de circunstâncias, calhou do livro ser lançado agora, quando a discussão sobre terras indígenas e invasões é especialmente urgente — ainda que nunca tenha deixado de ser urgente, atual e mal resolvida, infelizmente.
Os povoados dos guaranis e dos jesuítas pagavam tributo à Coroa espanhola e serviam de milícias. Sendo assim, a Espanha não deveria tê-los preservado no Tratado de Madri?
Não posso me alongar sobre o Tratado de Madri porque não é minha especialidade e tem muita gente que fala do assunto com mais propriedade, mas, correndo o risco de simplificar demais, acho que dá pra dizer que o tratado envolvia uma troca de territórios; os habitantes poderiam ir para espaços ainda espanhóis, mas não aceitaram.
Quais foram as heranças deixadas pela experiência das missões? E que cicatrizes da guerra guaranítica se fazem sentir até hoje?
Tratar das missões pode ser perigoso porque ainda há muito romantismo e, principalmente, um louvor acrítico aos jesuítas. Mas a historiografia mudou muito, claro, e há trabalhos recentes incríveis que colocam os guarani no centro da experiência missioneira e não mais como “ovelhas” dos missionários — e essa mudança deixa todo o projeto da “província do Paraguai” ainda mais interessante. Na nossa versão de Mbororé e da guerra contra as coroas, tentamos mostrar o protagonismo dos indígenas, que decidiram como reagir e se organizar. Mas acho que o romantismo também existe quando se pensa na herança dessa experiência, que deixou uma imagem meio mítica, mas que, na verdade, acabou em ruínas literais e figurativas. Já as cicatrizes da guerra guaranítica se misturam à história de lutas e à injustiça e iniquidade no tratamento dado aos povos indígenas desde então.
A HQ começa apresentando a preparação dos guaranis e dos jesuítas para a batalha de 1756, quando foram massacrados, mas a trama termina antes de sua derrota. O que vemos é sua vitória, aquela de 1641, em Mbororé. Gostaria que você falasse sobre essa escolha narrativa.
A ideia foi mesmo a de contar uma vitória. Quando começamos a conversar sobre o projeto, eu disse a Guazzelli que pensava na história como uma aventura, uma guerra de guerrilha, um sucesso improvável e heroico. Brinquei que essa vitória guarani era a nossa Little Bighorn, que é uma vitória indígena que qualquer criança norte-americana conhece, com os bandeirantes no papel do general Custer. A batalha de Mbororé não é desconhecida e já foi contada antes, então nossa escolha foi fazer a ligação entre essa luta, que de certa forma marca o início do desenvolvimento das missões — quando elas finalmente se livram dos ataques mais violentos dos “paulistas” — e uma guerra que vai marcar o início do fim daquela experiência, mais de cem anos depois. E como a narrativa da batalha acontece numa espécie de sonho do cacique Nicolas, usamos as ilustrações de um livro impresso nas próprias missões (o lindamente intitulado Da Diferença entre o Temporal e o Eterno) como referência, pra dar esse ar de delírio.
Que registros há do livro que narra o combate de 1641? O quanto há de reconstituição e de reimaginação na HQ? E os personagens, são baseados em figuras reais?
Há várias narrativas jesuítas sobre a batalha de Mbororé, e o livro que mostramos nos quadrinhos é um clássico jesuíta, do padre Nicolas del Techo, uma história de Província do Paraguai que tem um capítulo sobre a batalha. Escolhi esse só porque certamente podia ser encontrado nas bibliotecas das reduções maiores. Mas usamos outras fontes também. Baseei a narrativa da velha missioneira, contando os ataques e crueldades anteriores dos bandeirantes, numa carta que Ruiz de Montoya, um jesuíta importantíssimo na história das missões, escreveu às autoridades coloniais. Aliás, há uns meses finalmente vi o documentário Pirikpura, sobre os dois últimos sobreviventes dessa etnia, e fiquei boquiaberta ao ouvir o servidor da Funai contar que nos anos 1970 os garimpeiros usavam o mesmo método que Montoya descreve na carta, de tacar fogo nas residências e matar quem conseguia sair. Quase 400 anos entre crueldades idênticas. Mas tomamos liberdades na nossa história, claro. Alguns personagens são muito livremente baseados em figuras reais. O cacique Abiaru, por exemplo, existiu e está no livro de Del Techo. O cacique Nicolas e o padre Paulo são inspirados no escritor missioneiro Nicolas Yapuguai e no jesuíta Paulo Restivo, que trabalhavam juntos alguns anos antes do período em que se passa o livro.
E por que fazer de A Batalha uma história em quadrinhos? Por que resolveste estrear nos quadrinhos? E esta é uma obra estanque ou o início de uma parceria, de um projeto mais duradouro?
Resolvi escrever um roteiro de quadrinhos pra conseguir trabalhar com o Alemão Guazzelli, por quem tenho tanta admiração! Nos conhecemos há muitos anos, trabalhamos juntos nos anos 1980 na Otto Desenhos Animados e depois continuamos amigos. No estúdio do Otto, eu era a pior produtora do mundo, mas acho que me deixavam ficar porque eu me dava muito bem com os loucos todos. Espero que a parceria continue, temos ideias mas não um projeto definido. Minha tese de doutorado foi sobre a impressão de livros nas missões, um assunto que descobri pelas mãos de José Mindlin, e já publiquei pela Unesp uma tradução com um pequeno estudo do livreto Nicolas I: Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos, que foi uma espécie de “best-seller” do final do século 18 e que também descobri enquanto pesquisava para a tese; nos próximos meses, a própria tese vai ser publicada pela Edusp/Brasiliana. Da minha parte, então, acho que não vou ter mais o que dizer sobre o assunto por um bom tempo. Minha esperança é que o Guazzelli aceite trabalhar comigo em outros temas também!