Criador de Rocky & Hudson e Aline e Seus Dois Namorados, além de publicar tiras no jornal Folha de S. Paulo desde 1996, Adão Iturrusgarai tem um trabalho reconhecido e contundente com quadrinhos, roteiros de programas de TV e artes visuais. Agora, aos 57 anos, ele lança seu primeiro livro de prosa.
Paris por um Triz surgiu a partir de sua newsletter semanal, Correio Elegante, até ganhar o formato final que agora chega ao público (o lançamento em Porto Alegre é neste sábado, às 17h, no Med Gastro Giardino Mediterrâneo, na Avenida Independência, 891). Trata-se de uma autobiografia, com pitadas de ficção, que narra as desventuras do artista na capital francesa entre 1990 e 1991, buscando seu espaço entre as publicações do país europeu.
Natural de Cachoeira do Sul – hoje ele vive em Córdoba, na Argentina –, o autor reflete nesta entrevista a GZH sobre a vida longe de seu país, retratada no livro, e fala sobre sua experiência com a escrita.
O que te impulsionou a escrever os relatos de Paris por um Triz?
Foi um momento muito interessante e rico da minha vida. Eu fui para Paris, e a cidade ficou para sempre em mim, como diz Ernest Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará pelo resto da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa ambulante”. Se você vai para Paris, você pode sair de lá, mas a cidade vai ficar para sempre em você. Só que escrever para mim é uma coisa nova. Sempre quis escrever sobre o período, mas demorei para ter coragem. Quando comecei, foi no Correio Elegante, minha newsletter semanal. Escrevia textos da minha infância, memórias, blablablá. Relembrava minha trajetória, desde Cachoeira do Sul, Porto Alegre, artes plásticas, faculdade, viagens. Depois de dois anos escrevendo isso, pensei que poderia começar a falar de Paris. Era um processo semanal. Uma média de, digamos, três laudas por semana. E foi indo daquele jeito: nunca sabendo se conseguiria terminar. Mas tinha um retorno muito bom da newsletter. Depois de dois anos, eu terminei. No meio do caminho, pensei que o material seria bacana para dar um belo livro. E foi o que aconteceu. O livro é um dos projetos mais importantes da minha vida. Até porque a literatura é um brinquedinho novo. E não parei de escrever nunca mais.
Como é a experiência de ser escritor?
Não sabia se ia conseguir. Nos meus quadrinhos, sempre fiz os textos. Vários amigos já me disseram que meu humor é de texto. Mas escrever mesmo é diferente. Se faço um personagem levantar de um sofá e ir até a cozinha para pegar água, isso eu sei comunicar muito bem em quadrinhos. Agora, escrever isso de forma literária é outra coisa. Em alguns momentos, achava que não ia conseguir. E às vezes não conseguia. Trabalhei com a ajuda de pessoas que faziam correção, para arrumar algo aqui e ali, às vezes na gramática ou na ortografia. Mas fluiu. É engraçado que essa coisa de publicar semanalmente, deixando sempre no final um gancho para o próximo texto, foi algo que saiu instintivamente. E funcionou. As pessoas queriam sempre saber o que ia acontecer com “Adaô” (forma que os franceses pronunciavam o nome do cartunista) na semana seguinte. Deu certo.
Você chegou a romancear ou turbinar com ficção trechos de suas experiências? Ou foi o mais fiel possível?
Procurei ser o mais fiel possível, mas em alguns momentos houve toques ficcionais. Também misturei acontecimentos. Posso dizer que caí de cara no chão na avenida Champs-Élysées, mas isso aconteceu comigo em Barcelona. Há momentos romanceados que fazem parte do meu desafio na área. Não queria fazer a coisa só autobiográfica, mas criar situações críveis. Agora, a coluna vertebral da história é isso aí que está no texto, ela existiu. Aconteciam coisas absurdas, mesmo.
E por que Paris?
Tenho uma amiga em Porto Alegre, a Dedé Ribeiro. Naquela época, eu queria ir para algum lugar, Londres ou Nova York, que eram os lugares para os quais os jovens do meu perfil iam. Até que conheci a Dedé, que tinha acabado de chegar de Paris. Ela disse que tinha que ir para lá, mas pensei: “Que merda! Paris, francês…”. Só que tinha uma coisa aí. Para mim, os quadrinhos franceses eram muito importantes. Então, ela começou a me dar aulas de francês e conseguiu umas conexões. Me apresentou ao Alberto Oliveira, um músico gaúcho que já morreu e, à época, morava lá e foi meu primeiro anfitrião. Então, foi tudo culpa da Dedé (risos).
No livro, você relata que estava deslumbrado em Paris, além de esperançoso quando chegou. Às vezes eufórico e sonhador. Fale mais sobre essa sua mentalidade à época: que Adão era esse de 1990?
Sempre fui deslumbrado. Isso ainda faz parte de mim, um pouco. Chegar em Paris foi como eu descrevi ali: era um sonho sendo realizado. Inclusive, teve uma revisão forte no final do livro, que fiz com a Angélica de Barros, e a gente cortou muito texto, pois essa coisa do deslumbramento se estendia por cem páginas, não tinha como manter! (Risos.) Mas era assim. Estava ali. Era o prédio de Paris, a calçada de paris, o parisiense, o cara falando francês. Lembro que era assim também quando ia ver os shows. Naquela época, quase não existia shows de bandas de fora em Porto Alegre. Lembro quando fui assistir ao The Cure no Gigantinho e ficava olhando para a banda e pensando: “Nossa, como eles são brancos”. “Há dois dias ele estava andando pelas ruas de Londres.” “Eles falam inglês!” (Risos.)
Ainda conversa essa característica?
Ah, o tempo vai passando e a gente muda um pouco. Mas voltei para Paris várias vezes e é sempre um impacto. Claro, não é como era antes, quando tudo era novidade. E depois você vai conhecendo outros lugares e muitas coisas passam a ser comuns. Mas a primeira viagem… Nunca tinha imaginado que iria viajar para fora, sempre fui durão de grana. Odiava meus colegas da PUCRS que tinham grana e diziam: “Ah, fui passar o fim de semana em Nova York”. Ficava com inveja, não tinha dinheiro para ir a Camboriú (risos).
Em mais de um trecho, você traz uma visão curiosa dos franceses sobre os brasileiros. Segundo os personagens locais do livro, os brasileiros são livres e sabem curtir a vida. Só “pensam naquilo” e são “inventivos”. Essa visão se mantém?
Eu era um brasileiro falso. Até por isso a maioria das pessoas não dava bola para mim: eu não era o cara do Carnaval, que mora na praia. Acho que se mantém um pouco essa imagem do brasileiro, sim. Lembro que, no meu trabalho na Waikiki (marca de roupas infantojuvenis da França), os chefes chegaram a falar certa vez: “Seu trabalho ficou legal, mas, como você é brasileiro, quero que refaça, pois você é capaz de ser mais criativo ainda. É o homem do samba”. Os franceses invejavam a nossa alegria, mas isso mudou muito. O Brasil agora é um país meio estranho, sobretudo nos últimos anos.
Paris por um Triz tem momentos sublimes de comédia. Alguns dignos de pastelão, como quando você troca o pneu de um carro antes de um encontro. Há muito humor com uma pegada de constrangimento. Que olhar você tem hoje para esses episódios que seriam embaraçosos?
O livro todo tem um pouco disso. O barato do personagem é esse, a montanha-russa emocional que ele vive. Vai lá, acha que vai se dar bem, mas cai, fica lá embaixo. Depois sobe novamente. Nós somos um pouco assim. Não sei se um dia vamos nos acostumar a isso. O fracasso tem algo divertido, também. O grande barato do quadrinho e do humor é contar o fracasso.
Paris por um Triz é uma montanha-russa emocional, como você disse: quando parece que Adaô vai se dar bem, alguma coisa o puxa de volta para a estaca zero. Às vezes, havia uma autossabotagem.
Cara. É isso mesmo. Talvez seja um pouco da minha personalidade e eu tenha que falar isso com meu psicanalista (risos). Mas a sabotagem está na gente sempre. Temos que tomar cuidado com isso.
Como você encara hoje essas situações de sabotagem?
Elas passaram. Hoje eu me conheço muito mais do que antes. Tem coisas que sei que podem acontecer, já dá para prever alguns caminhos. A gente já fica um pouco armado, mais preparado.
A pintura e a escrita me trouxeram liberdade. Não tenho que dar muita satisfação. De vez em quando sofro um pouco nas redes, mas a gente sabe que tem coisas que não pode publicar. O mundo mudou muito. Se você pegar coisas do humor de 30 anos atrás, por exemplo, Los Três Amigos (Angeli, Laerte e Glauco), não dá. Mas você vai mudando. Tem piada que não tem mais graça também.
Você teve frustrações e chegou a duvidar de suas capacidades no final da jornada. Que impactos emocionais a experiência em Paris te trouxe? E como você superou traumas de lá?
Quando passo a me dar conta de que Paris não era tão fácil como imaginava, não era um filme francês colorido e maravilhoso, a coisa começa a ficar pesada. Em um momento, estava impressionado por estar no Quartier Latin (bairro parisiense). Depois de um tempo, é como estar perto do Mercado Público, em Porto Alegre. Como estar em qualquer lugar do mundo. Como estar na Rodoviária de Capão da Canoa. Tudo vai ficando parecido. Eu voltei com o rabo entre as pernas para Porto Alegre. Saí do centro do mundo, digamos assim. De repente, estou de bermuda, comendo em um bar com chão de areia, com pouca grana e em um país com inflação alta. Depois me acostumei. Vi que meu lugar estava por Porto Alegre mesmo, naquele momento, o que era maravilhoso.
Mas logo foi para São Paulo.
Paris foi um estágio, uma preparação para fazer a grande mudança da minha vida, que foi sair de Porto Alegre e ir para São Paulo, em 1993. Devo muito da minha formação profissional à capital paulista. Paris me ajudou nisso. Desenhei pouco em Paris, mas era como se minha cabeça estivesse desenhando o tempo inteiro e ia absorvendo coisas. Acho que, se ficasse lá mais tempo batalhando, eu poderia ter conseguido ficar lá. Mas, para mim, foi mais proveitoso ter ido para São Paulo. Às vezes a gente desmerece nosso país, mas a cena dos quadrinhos em São Paulo nos anos 1990 era muito forte. Principalmente de um humor que tem a ver com o meu.
De que maneira sua experiência em Paris transformou sua vida? Que influência teve no seu trabalho?
Vivi muito intensamente em Paris. Quando fui para lá, minha ideia era me misturar com as pessoas da cidade e me transformar em um francês. Já estava quase conseguindo isso, meu francês já estava quase sem sotaque. Então, absorvi muito da verdadeira Paris, não a turística. Fui guardando isso dentro de mim, virou parte do meu corpo, como se fossem células, e isso se manifesta no meu trabalho de formas que às vezes não me dou conta. É como Hemingway falou, mesmo. Aos 25 anos, você absorve muito.
Você acha que, quando foi a Paris, você ainda não estava amadurecido? Já pensou se fosse em outra época, tipo uns 10 anos depois, um pouco mais maduro?
Olha, se tivesse ido 10 anos depois, é possível que tivesse ficado. Conseguiria trabalho e tudo o mais. Eu imagino uma história: imagina assim, Adaô dá certo lá. Depois de ralar muito, começa a publicar. Fica amigo de desenhistas locais. Começa a fazer exposição. É convidado para trabalhar aqui e ali. De repente, fica amigo do Georges Wolinski (cartunista francês, assassinado no massacre da revista Charlie Hebdo em 2015). Aí ele o convida para trabalhar na Charlie Hebdo. Aí, numa manhã do início de 2015, ele é morto no ataque terrorista. Então... Sempre pensei nisso.
No livro, você conta que chegou a ficar de plantão na frente do local onde Wolinski trabalhava para tentar conhecê-lo e conseguir uma oportunidade. Chegou a encontrá-lo?
Sim, mas depois, no Rio de Janeiro, em um festival de quadrinhos. Troquei umas revistas com ele. Ele gostou do meu trabalho. Depois fomos para um bar no Rio e acho que ele ficou entediado com os desenhistas. Simplesmente se levantou e disse: “Com licença, vou embora. Vou procurar umas prostitutas”. Nunca mais o vi.
Não é fácil estar num bar com desenhistas…
Mas conheci a neta dele, que mora em São Paulo. Nos encontramos para fazer uma exposição juntos, com material meu e do Wolinski. Eu tinha armado uma reunião com a avó dela, Maryse, mas ela morreu. Daí ficou tudo complicado.
Você tem uma clara influência do Wolinski no traço. Como se sentiu ao receber a notícia do assassinato dele?
Foi como se tivesse morrido um familiar, um pai. Quase isso. Foi algo inacreditável.
Falando sobre humor, você sente que os tempos atuais limitam sua produção? Ou você se sente adaptado?
Tem a coisa do politicamente correto. Há linchamentos nas redes sociais. Há uma geração nova que parece ser de cristal: você não pode tocar em nada que já se quebra. Mas, na verdade, estou tranquilo com o que tenho feito. Com o humor, estou muito feliz com o momento criativo da minha carreira. Essa coisa de ter diversificado, além de fazer quadrinhos. A pintura e a escrita me trouxeram liberdade. Não tenho que dar muita satisfação. De vez em quando sofro um pouco nas redes, mas a gente sabe que tem coisas que não pode publicar. O mundo mudou muito. Se você pegar coisas do humor de 30 anos atrás, por exemplo, Los Três Amigos (Angeli, Laerte e Glauco), não dá. Mas você vai mudando. Tem piada que não tem mais graça também.
Ainda há reclamações pelo seu trabalho?
Já lidei muito com isso, mas eu também gostava de provocar. Imagina isso no Facebook ou no Instagram. Eu não posso publicar sem dizer na legenda “olha só o que eu fazia naquela época”, se não as pessoas enlouquecem. Essa coisa independente era linda. Hoje está tudo conectado. Como tem essas coisas de as pessoas poderem comentar (nas redes sociais), às vezes tem lá os patriotas, os bolsonaristas, os católicos ou essa gente que não está acostumada com o teu trabalho. Chegam ali de passagem e querem opinar.
Você tem vontade de escrever outro livro?
Sim. Nessa minha estada em Paris, dei duas escapadas que não coloquei no livro porque não queria me estender muito. Uma para Barcelona e outra para Amsterdã. Como surgiu uma nova fase do Correio Elegante, peguei o Adaô e suas aventuras nesses lugares. E para me preparar para um possível livro, que não sei qual vai ser ainda. Tenho um material extenso de memórias anteriores à Paris, também. Pensei ainda em escrever sobre Nova York ou sobre a Patagônia, onde morei. Devo seguir misturando o ficcional com o autobiográfico. Não quero parar.
Além do lançamento do livro, no que você está trabalhando? O que planeja para este ano?
Uma das coisas que estou planejando é lançar esse livro na França. Falta uma editora. Devo tentar fazer uma lançamento em português por lá também. Já me propuseram uma adaptação para a TV, mas não tem nada certo. Vou continuar pintando e escrever outro livro. Quem sabe, começar a publicar os meus quadrinhos de outra forma. Pensando em criar uma plataforma para as pessoas assinarem e acessarem meu conteúdo. Além disso, estou em negociação para lançar dois outros livros, mas aí de quadrinhos e com meus trabalhos artísticos.