Por Manuela Sampaio de Mattos
Psicanalista
Neste sábado (6/11) será lançado em Porto Alegre, na Livraria Bamboletras, o livro Imaginar o Amanhã, composto a quatro mãos pelos psicanalistas Abrão Slavutzky e Edson Luiz André de Sousa e publicado pela Diadorim Editora. Na ocasião, haverá uma sessão de autógrafos para os que forem prestigiar o evento (na terça-feira, dia 9, os autógrafos serão na Feira do Livro, às 19h).
A obra é um convite para muitas reflexões acerca do momento contemporâneo, e eu gostaria de destacar uma mensagem que me pareceu central: há uma convocação para que apostemos na esperança em relação à possibilidade concreta do amanhã – que nos lança no contexto de um futuro ainda possível, capaz de nos situar novamente em laço com a comunidade humana.
Observando a forma e a lógica do ensaio e, arrisco dizer, o método da montagem, neste livro dois amigos unem escritas oriundas de um momento histórico desafiador. É possível dizer que são testemunhos de sobreviventes de um Brasil muito adoecido, cunhados com a força da imaginação estética via palavra escrita. Já na epígrafe, que traz um trecho literário de Conceição Evaristo, os autores nos mostram que navegaremos por mares revoltos, mas que não estaremos sozinhos. No verso escolhido, uma eterna náufraga dos fundos oceanos afirma não sentir medo e paralisia, pois uma paixão profunda é a boia que lhe emerge. Recebemos, assim, o recado de que faremos a travessia dessa escrita podendo contar com uma boia que se sustenta em uma paixão profunda, a qual parece ser a paixão pela palavra, pela memória e pelas mais variadas formas criativas que nos relançam no campo da linguagem. Sendo a linguagem, neste livro, tomada como um tecido quente e macio capaz de nos envolver uma vez mais no sentido de um comum.
Imaginar é o verbo utilizado no título para que um amanhã seja concebido. E, no intuito de levar a cabo o exercício do imaginar, do criar, cada texto visita pontos nodais da história de nossa nação. Percebemos que tal experiência de imaginação só é possível através da operação de um trabalho intenso de memória. Sabemos quão sensível é o tema da memória em nosso país, pois levanta as mais fortes resistências e graves reações quando procuramos tocar em seus nervos expostos, os quais mostram a “origem”, a fundação violenta da nossa “civilização”. Os autores têm a coragem de resgatar essas origens, relacionando questões traumáticas do tempo presente com traumas fundantes da nossa história: a escravização de povos africanos, o colonialismo, a violência contra os povos originários, os retornos de governos totalitários, apenas para nomear alguns desses traumas.
Puxando o fio de Ariadne, os autores adentram nossa ferida ainda em processo de abertura no que diz respeito à pandemia. O primeiro texto versa sobre a função do despertar, como isso nos tornaria capazes de sair de um estado de dormência, de anestesia que nos impede de perceber que estamos em asfixia. Ao longo da obra, passamos pela importância dos ritos, sejam eles de luto ou de memória, experiências que acontecem coletivamente, pois apenas dessa forma algo da dor pode se inscrever no simbólico.
Os amigos também nos pegam pela mão para percebermos, juntos, que os tecidos da vida são pautados pelo tempo e, também, pelos textos que somos capazes de produzir e de fazer leitura; para lermos as cinzas, os restos, para sermos todos coveiros dos corpos de uma catástrofe para termos coragem de transitar pelos segredos dos labirintos, para ouvirmos as vozes emudecidas, para sermos fortes e sentirmos o calor ardente das brasas de um país que queima sob nossos pés, diante do nosso olhar. Estendem-nos a boia da palavra para nos dar tempo de alguns respiros neste profundo estado de afogamento e cansaço em que nos encontramos.
Pelos ensaios, somos convidados a visitar narrativamente variadas exposições artísticas, as quais buscam dar um contorno para o que já vivemos e para o que estamos vivendo – não estamos sozinhos, somos muitos. Recebemos imagens de obras e acontecimentos que são legados imunizantes contra o totalitarismo; somos lembrados, a todo tempo, sobre a importância do poema de cada um – no sentido em que destaca uma das epígrafes do texto de abertura, citando Paul Celan: “Meu poema é a minha faca”.
Não devo esquecer, além disso, que a minha leitura foi conduzida pelo sumário, sua forma, que oferta uma mirada do agulhão poético.
Instaurada a função do despertar, chegamos ao final retornando ao início – somos convidados a “sonhar juntos para não naufragar”. Temos a oportunidade de tomar contato com alguns sonhos registrados no projeto Inventário dos Sonhos, que continuou assiduamente seu trabalho durante a pandemia. O sonho, aqui, é lido como uma travessia que mapeia rotas para novos caminhos de vida, depois do despertar. Rotas e registros que se tornam, ao comporem-se, um farol que avista o futuro com esperança, como sugere a capa de Alice Tessler. Ao final da leitura, lembrei novamente de Celan, em seu Elogio da Distância, para dizer aos amigos que, aqui, após termos nos dado as mãos: “Um fio apanhou um fio: separamo-nos enlaçados”.