O tempo passa mais rapidamente durante a pandemia? Ou seria o contrário? Para alguns, o ano de 2020 voou; para outros, especialmente para quem praticou o isolamento social nos últimos meses, parece ter se arrastado. É assim mesmo, explica o psicanalista Edson Luiz André de Sousa: a percepção sobre a passagem do tempo é subjetiva e, muito em função disso, enigmática. Sousa, que tem doutorado e pós-doutorado na Universidade de Paris VII, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aceitou responder, por e-mail, as perguntas seguintes enviadas por GZH aprofundando essa discussão.
Durante a atual pandemia de coronavírus e o isolamento social, a percepção de muitas pessoas sobre a passagem do tempo se alterou. Qual o fundamento disso?
A reflexão sobre nossa experiência com o tempo é uma questão complexa e desafia o pensamento. Estamos todos vivendo uma situação traumática em que temos a sensação de perder o chão. O trauma desorganiza nossa relação com o mundo, com o tempo, com o espaço, com a memória. Produz um efeito de paralisia, de insegurança e de perturbação psíquica, abalando nossa percepção e nossa condição de reagir aos perigos que identificamos. Portanto, a pergunta é justa. Estamos alterados em todos os sentidos: tempo, espaço, laços familiares, trabalho, sobre o que somos, o que fomos, o que seremos. Mais de 200 mil pessoas morreram no Brasil, vidas interrompidas, lutos incompletos, pois muitos nem tiveram a chance de se despedir em cerimônias fúnebres tão importantes no trabalho psíquico que é elaborar a perda de alguém próximo.
Quando falo da alteração da percepção, me refiro também aos mecanismos de negação dessa realidade, que é devastadora. Infelizmente, mesmo depois de quase um ano, ainda vemos muitos fecharem os olhos para a ciência, para os cuidados básicos de proteção e, o que é pior, se recusarem a se vacinar. Que abalo é esse na percepção da realidade que faz com que muitos escolham correr o risco de perder a própria vida? Neste ponto, é importante acrescentar que as políticas públicas têm papel fundamental no cenário catastrófico.
A pandemia também desdobrou vários mundos que coexistem simultaneamente. Os que podiam ficar em casa, trabalhando, estudando, e os que não tiveram chance dessa escolha, tendo de manter seus movimentos de vida, exatamente como faziam antes. Para alguns, portanto, “o tempo não deu trégua”.
Vivemos uma era de aceleração tecnológica, maior compartilhamento de conhecimento e a sensação de que as distâncias diminuíram. O quanto isso altera a nossa percepção da passagem do tempo? E o quanto essa eventual alteração fica abalada com o isolamento social?
Essa pergunta me faz lembrar o que diz o filósofo Gaston Bachelard no seu ensaio A Intuição do Instante. Escreve ele: “O tempo só tem uma realidade: a do instante. Em outras palavras, o tempo é uma realidade encerrada num instante e suspensa entre dois nadas”. Pergunto-me: em que medida estamos em condições de levar à risca essa proposição do filósofo? Celebramos, é claro, o desenvolvimento das tecnologias, os avanços do conhecimento que ampliaram nossos recursos técnicos de comunicação e de deslocamento. Mas isso não significa que esse progresso garanta uma riqueza maior na experiência de comunicação. O filósofo Walter Benjamin já alertava há muito tempo quando falava no empobrecimento da experiência. Ele escreveu, em um ensaio, que estamos mais ricos de informação e, ao mesmo tempo, mais pobres em nossa condição de narrar. É estarrecedor constatar que ele escreveu isso nos anos 1930, época em que ainda não tínhamos a internet e todos os recursos que temos hoje nas mãos. Somos grandes consumidores de informação, às vezes em excesso e sem critério seletivo. A proliferação de informação abriu espaços de pensamento, mas também uma espécie de paralisia, de anestesiamento, sempre que não sabemos onde nos situar no bombardeio de informações. Assim, vemos aquele sujeito que consome muita coisa, se desloca para muitos lugares e, apesar disso, tem a sensação de monotonia, de tédio, de estagnação.
Acho que o eixo da reflexão deveria ser muito mais sobre o que nos coloca em atividade, como sujeitos de nossos movimentos, de nossas escolhas, de nosso tempo, e não como mero consumidores passivos.
A proliferação de informação abriu espaços de pensamento, mas também uma espécie de paralisia, de anestesiamento, sempre que não sabemos onde nos situar no bombardeio de informações. Assim, vemos aquele sujeito que consome muita coisa, se desloca para muitos lugares e, apesar disso, tem a sensação de monotonia, de tédio, de estagnação.
O cenário das fake news – outra espécie de vírus, é preciso dizer – é um exemplo dessa cena do consumidor passivo. A pandemia talvez tenha possibilitado a alguns repensarem suas relações com a tecnologia, com a família e os amigos, com o trabalho, suas posições diante do mundo, seus princípios solidários, suas estratégias de sobrevivência, suas posições políticas. Testemunhamos movimentos bonitos de solidariedade, em ações nem sempre tão visíveis na grande mídia: pessoas cozinhando e distribuindo marmitas, pessoas propondo campanhas para ajudar algumas comunidades, pessoas propondo serviços voluntários...
O isolamento social exigiu uma restrição maior nos movimentos. Muitos ficaram em casa, viagens foram canceladas. Mas acho que isso não significou necessariamente um empobrecimento. Cabe a cada um pensar o que fez ou pode fazer com seu tempo. A maior viagem continua ainda sendo poder habitar o desconhecido que somos, encontrar algo inédito no que está próximo e nos enriquecermos com aquilo que poderemos vir a ser. Desejaria muito que este tempo inédito de ruptura na continuidade da vida permitisse também a cada um pensar sobre sua responsabilidade diante da comunidade em que vive. Talvez este seja o sentido mais radical do que podemos entender por política.
Enquanto pessoas isoladas lamentam o que seria um “tempo perdido”, outras sentem-se confortáveis nessa condição. A despeito dessas diferenças, revela-se uma insistência em dominar o tempo, em não deixar que o tempo passe sem “aproveitá-lo”. O que explica isso?
Perguntas fundamentais: como dominar o tempo? O que significa aproveitar o tempo? Estamos sempre em busca do tempo perdido. Mas o tempo sempre é perdido quando desprezamos o instante, como mencionei antes. Marcel Proust nos deixou milhares de páginas sobre esse tema, no seu Em Busca do Tempo Perdido. Contudo, a questão evidencia mais uma vez a violenta diferença social em que vivemos, à medida que alguns não tem possibilidade de escolha. A condição social os obriga a sacrificar seu tempo na luta heroica para sobreviver. Estes jamais estão confortáveis nesse cenário, o que não implica que não saibam inventar seus momentos de alegria e que possam celebrar a vida.
Poder dispor do seu tempo é um luxo. Curiosamente, os bens de luxo do nosso tempo não se restringem aos objetos de consumo, como sempre foi o caso. Hans Magnus Enzensberger, em sua reflexão sobre a história do luxo, mostra que hoje poder dispor do seu tempo, por exemplo, é um artigo de luxo.
Cabe a cada um pensar o que fez ou pode fazer com seu tempo. A maior viagem continua ainda sendo poder habitar o desconhecido que somos, encontrar algo inédito no que está próximo e nos enriquecermos com aquilo que poderemos vir a ser.
Não controlamos o tempo, embora estejamos sempre tentando domá-lo. A experiência do tempo nos confronta com nossa finitude, com o tempo que temos e com o tempo que sonhamos ter. Essa conta nunca fecha. Sigmund Freud escreveu um belíssimo texto que nomeou Da Transitoriedade, no qual justamente mostra que o que conta nessa relação é nossa condição de atribuir valor. Assim, não é a brevidade do tempo que retiraria valor da experiência vivida. Ele escreve: “Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”.
Outro aspecto: não controlamos o tempo, mas o tempo do trabalho nos controla e temos que estar atentos para não sucumbirmos nessa servidão. O que escutei de muitas pessoas é que o isolamento aumentou o trabalho para os que estão trabalhando de casa. O home office implodiu a paz do espaço doméstico, que se viu invadido pelas demandas sempre excessivas do trabalho. Como se agora, por estar online, fosse possível estar sempre 100% disponível. Dar o nosso tempo dessa forma é ficar sem nada, pois ainda é ele, o tempo, nosso bem mais precioso. Nesse ponto lembro de Jorge Luis Borges: “O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me leva, mas eu sou o tempo; é um tigre que me rasga, mas eu sou o tigre, é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”.
O quanto nossa percepção da passagem do tempo está relacionada ao espaço físico em que estamos inseridos e às atividades que desenvolvemos?
Thomas Mann escreve um romance sobre esse ponto em A Montanha Mágica. Ali, o personagem principal, poderíamos dizer, é o tempo. Constatamos mais uma vez que nossa experiência do tempo não é medida pelo relógio, mas por nossa forma de percebê-lo. Nessa narrativa, o escritor discorre sobre o tédio, o hábito, a aventura mostrando finalmente que, sempre que conseguimos ser criativos, ativos, produzindo novas experiências, temos a sensação de que tudo passa muito rápido no momento vivido. Contudo, depois, ao nos lembrarmos desses momentos, eles ficam registrados em um campo de memória dilatado, onde muita coisa aconteceu. Por outro lado, quando nos entregamos à monotonia, temos a sensação ilusória de um tempo expandido, de longa duração, mas um registro de memória de que tudo passou muito brevemente. A espessura do tempo, portanto, tem uma relação com a forma como construímos nossas vidas. Mais do que o aumento ou a diminuição da sociabilidade, o que está em jogo, me parece, são a qualidades dessas relações, o quanto elas nos trazem algo novo. Não adianta meus milhares de “amigos” se não tenho tempo de uma troca efetiva com eles. Acho que nossos registros, mais do que nunca, precisam estar atentos a essas qualidades. A interação social ativa o funcionamento dos espelhos, mas quando não conseguimos ver nada diferente de nós mesmos nos contatos que temos, e só buscamos aquilo com o qual nos reconhecemos, com certeza há algo que fracassa nesse laço social.
Tentar controlar o vivido é sempre empobrecedor, pois fixamos o tempo com os sentidos de sempre, os hábitos de sempre. Imaginar é soltar amarras, uma espécie de viagem. As épocas de maior liberdade foram aquelas em que foi possível ampliar os espaços da imaginação.
A imaginação e a arte nos fazem “viajar” para outro tempo-espaço, o que de algum modo nos liberta do tempo vivido. simultaneamente a essa libertação, buscamos de algum modo demarcar a passagem do tempo em anos, meses, dias, horas, segundos. a dicotomia entre esse controlar o vivido e dar asas ao imaginado se estabelece paralelamente. O senhor identifica momentos de prevalência de um lado ou de outro?
Fundamental nos darmos conta de que o tempo vivido não se contabiliza em anos, meses, dias. Tudo depende de nossa condição de viver esse tempo, de nossa forma de narrar para o mundo e para nós mesmos. Nesse sentido, a imaginação amplia o tempo, nos permite viver outros mundos, viajar, perceber outras vidas, outras sensações. A imaginação aciona o inédito, aquilo que vem fazer ruptura na eterna repetição do mesmo. Montaigne, nos seus clássicos Ensaios, escreve que é possível que, para quem emprega bem seu tempo, a ciência e a experiência aumentem com a vida. Acredito que isso ocorre por uma simples razão: fomos capazes de abrir um espaço de liberdade em relação a nossa vida. Contudo, a mesma liberdade que desejamos também tememos. Quantas vezes nos angustiamos diante do tempo livre, já que, nessa hora, temos de ser responsáveis por nossas escolhas.
Tentar controlar o vivido é sempre empobrecedor, pois fixamos o tempo com os sentidos de sempre, os hábitos de sempre. Imaginar é soltar amarras, uma espécie de viagem, como sugeres na pergunta. As épocas de maior liberdade foram aquelas em que foi possível ampliar os espaços da imaginação.
A mesma liberdade que desejamos também tememos. Quantas vezes nos angustiamos diante do tempo livre, já que, nessa hora, temos de ser responsáveis por nossas escolhas.
A imaginação é uma espécie de vacina contra a pobreza. Me refiro à pobreza de pensamento. Esse é um desafio que temos: pensar com autonomia, duvidar, perguntar, inventar. A cultura e as artes têm uma função política importante, pois acionam essas perguntas, e por isso são atacadas por governos que não toleram serem colocados em questão. A história nos mostra que os movimentos que abrem espaço à imaginação são temidos pelo poder.
A experiência psicanalítica, por exemplo, mostra o quanto a vida se expande se abrirmos tempo para nos ouvir, ouvir o texto de nosso sofrimento para que possamos dar outro destino a ele, escutar nossos sonhos. Essas são verdadeiras viagens ao desconhecido que habitamos. Nesta pandemia, participo do projeto de pesquisa Inventário de Sonhos, que recolhe sonhos das pessoas no período. Já recebemos mais de mil sonhos, e é impressionante constatar o quanto as narrativas revelam a amplidão da vida onírica, a força da imaginação e nosso poder de construir imagens. Como em um poema de Conceição Evaristo, “nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra”. Para viajar, basta abrir espaço à imaginação. Espero que a pandemia nos ajude a entender melhor a circulação sanguínea do país e que possamos não só buscar a vacina para o coronavírus, mas também para o vírus da intolerância e da desigualdade que habitam estes trópicos.