Abrindo oficialmente a programação da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre, a escritora chilena Isabel Allende revelou, em bate-papo nesta sexta-feira (30), detalhes tanto de seu processo criativo quanto de sua vida pessoal. No encontro mediado pela jornalista Lúcia Mattos, pela escritora Anna Mariano e pela professora Regina Kohlrausch, a autora afirmou que, apesar de a crise do coronavírus ter afetado as pessoas em um nível mundial, o isolamento não a atinge de maneira tão negativa.
De acordo com ela, por conta de sua profissão, está acostumada a estar sozinha, em silêncio, e até contou que devido ao confinamento conseguiu escrever um novo manuscrito. Para o mundo pós-pandemia, ela acredita que a sociedade irá evoluir:
— Nós vivemos em um só planeta, então algo que acontece com uma pessoa que está na China prejudica a todos. É a primeira vez na história que isso acontece e estamos conectados pela tecnologia, então nós ficamos sabendo do que está acontecendo. O futuro vai poder apresentar acho que uma forma melhor, no sentido de que vai haver uma maior inclusão, um ressurgimento dos valores femininos, porque já vimos que o patriarcado não funciona, e nessa pandemia foram as mulheres que estiveram nas linhas de frente. E aqueles governos dirigidos por mulheres são onde a pandemia está mais controlada. Então temos que fortalecer os valores femininos. Nos 78 anos da minha vida, eu vi muitos progressos e evoluções, então eu tenho fé no futuro — contou.
Isabel costuma se classificar como uma "eterna estrangeira", sendo que durante sua trajetória de vida já foi tanto imigrante quanto refugiada. Ela é conhecida por ter gosto por escrever cartas, e explicou que o fato de estar separada de sua mãe a ajudou a criar o hábito.
— Todos os dias, quando terminava o dia, eu escrevia uma carta à minha mãe. E todos os dias ela me escrevia também. Então na garagem eu tenho as cartas separadas em caixas, eu tenho 24 mil cartas da minha mãe, que eu escrevia e ela e ela também me escreveu — relatou.
Questionada sobre a possibilidade de as correspondências virarem um livro, Isabel negou:
— É um compromisso que tenho com a minha mãe. A ideia era que eu queimasse tudo. Mas eu não pude queimar numa fogueira esses manuscritos, são cartas pessoais. Dela e minhas, e a gente não quer que outras pessoas saibam. Então, não, essas cartas são privadas. O meu filho vai ter a tarefa de queimá-las quando eu venha a falecer.
Por outro lado, a autora adiantou alguns detalhes sobre uma nova obra que ainda será lançada. Mulheres de Minha Alma fala sobre sua relação com a luta feminista e sua condição como mulher.
— Digamos que é uma memória, um ensaio sobre um tema particular, que é o ser mulher. A visão que eu tenho da minha própria experiência. O que significava quando eu comecei no feminismo, muitos anos atrás — contou.
Luta e literatura
Ao avaliar positivamente as manifestações no Chile, ela também deu uma prévia de como foi seu contato com a luta pela igualdade de gêneros em casa. Atualmente, o país está no epicentro de uma trama política para que uma nova Constituição seja escrita. O atual regimento de regras da nação data da ditatura de Augusto Pinochet — embora com alterações feitas por governos democráticos posteriores — e foi elaborada a portas fechadas, sem consulta popular.
— Quando eu era jovem, minha mãe tinha muito medo de que eu saísse nas ruas proclamando o feminismo. E eu era uma ativista. E ela dizia: por que você faz tanto ruído? Você pode fazer tudo o que quiser com elegância, sem tanto ruído. E eu dizia: não, você tem que fazer ruído. Tem que protestar e lutar para obter as mudanças. Este é o princípio de toda a mudança — disse. — Eu tenho esperança de que esse fenômeno que foi a demanda para uma nova Constituição do século 21 que inclua a todos possa ser copiada em outros países. Chegou o momento de mudar este patriarcado, o mundo como está hoje. E podemos começar assim, como os chilenos estão começando. Imaginando um sistema mais justo, que seja mais inclusivo — acrescentou.
A obra foi escrita primeiro em espanhol e depois traduzida para o inglês pela própria escritora. Trata-se de um processo do trabalho dela quando opta por escrever romance ou ficção.
— Quando é um romance, isso não passa na cabeça, passa no coração, e tem que ser no meu próprio idioma, no espanhol — contou a autora, que também tem a disciplina de, sempre que vai começar a escrever um novo livro, fazê-lo em 8 de janeiro, data em que concebeu um de seus maiores sucessos, A Casa dos Espíritos.
Apesar disso, Isabel conta que o fato de estar morando há 30 anos nos Estados Unidos mudou sua forma de escrever. Os temas, no entanto, seguem os mesmos: amor, violência, família, traição e lealdade, morte, comunidade e injustiça.
— Quando eu leio um texto meu e vejo que tem muitos adjetivos eu fico chocada, eu quero limpá-lo, quero deixá-lo mais sensível. Então se posso conseguir um bom substantivo para substituir três adjetivos, eu prefiro. — revelou. — As histórias que eu conto não mudaram tanto (...), os temas seguem se repetindo. Então, no meu pessoal, eu continuo com os mesmos demônios — acrescentou.
Na esteira do sentimento de ser estrangeira e da necessidade de sobreviver em meio às crises, a autora refletiu sobre a diferença entre ser refugiado e ser imigrante. E, embora tenha dito não saber se é um tema da literatura atual, certamente é um assunto importante.
— Tudo é global hoje em dia, a informação, as drogas, as armas, o capital. Menos as pessoas. As pessoas, elas têm que estar nas fronteiras. Existem 74 milhões de refugiados hoje em dia, a maioria mulheres e crianças, então minha Fundação (Isabel Allende, criada em 1996) trabalha com refugiados. E como eu tive a experiência de deixar tudo que amava para trás e sair do meu país, eu sabia como essas pessoas entendem. É diferente ser imigrante e ser refugiado. O imigrante vai a outro lugar por vontade própria, buscando um futuro melhor, e ele não olha para trás. Mas o refugiado sai fugido para salvar a sua vida, deixa tudo e tem que começar em outro lugar sem nada. E ele sempre está olhando para trás, olhando para o passado, esperando voltar. É uma atitude e uma emoção muito diferentes — afirmou.
Embora acabe abordando nas suas obras questões que estão em alta nas discussões políticas, ela contou que a ideia não é trazer solução para um problema, e sim compartilhar uma história para que as pessoas possam se conectar.
— Quando falamos de imigrantes (...), falamos sobre números abstratos, eles não têm rostos. Mas quando você conhece a pessoa, sabe seu nome, vê seu rosto e ouve sua história, tudo muda. A sua ideia do problema muda. A distância encurta. E você se dá conta de que temos muito mais em comum do que aquilo que nos afasta, das diferenças. Quando eu escrevo, me conecto com o leitor, intimamente, contando minha história. Com a mesma intimidade que eu contaria se estivesse na cozinha com ele. Neste relato, neste desejo de contar, não há uma mensagem. Eu não quero fazer política nem escrever algo e resolver um problema, porque eu não sei sobre isso, eu só sei é contar, e é o que eu faço, compartilho minhas histórias — disse.
Quanto à relação de autoras com o sistema literário, ela aponta que, quando A Casa dos Espíritos foi publicada, o mundo estava obcecado com a literatura latina, mas não havia nenhuma mulher. Após o sucesso de sua obra, editores acabaram percebendo que existe um mercado inteiro para pessoas do sexo feminino, que usualmente compram mais ficção do que os homens.
— Hoje, tanto mulheres quanto homens escrevem, mas nós sempre nos lembramos dos nomes masculinos, e os professores ensinam na universidade os clássicos, que são todos homens. Então a crítica trata as mulheres como forma mínima, às vezes inclusive as ignora. Então é mais difícil para uma mulher, ela tem que fazer um duplo esforço para ter a metade de um reconhecimernto, mas isso em todas as áreas. Mas sim, tivemos conquistas e acho que nós avançamos bastante nesse sentido — avaliou.
Ao ser questionada sobre um conselho que daria para jovens autores, ela relembrou a resposta dada por Elizabeth Gilbert, escritora de Comer, Rezar, Amar:
— Perguntaram isso a essa autora e ela disse: "Não espere que a escrita te dê fama nem dinheiro. Nem sequer espere publicar. Escreva porque você ama o processo". E esse é o segredo: amar o que você faz — afirmou.
Feira do Livro
Em formato virtual por causa da pandemia do coronavírus, a Feira do Livro de Porto Alegre iniciou sua 66ª edição nesta sexta-feira (30). Sem a estrutura na Praça da Alfândega, o público poderá conferir de casa toda a programação, por meio do site do evento, Youtube e redes sociais. As principais atrações do sábado (31) são as conversas com a escritora espanhola Rosa Montero, às 15h, com a brasileira Conceição Evaristo, às 18h, e com a portuguesa Inês Pedrosa, às 19h30min.