Por Guilherme Mautone
Filósofo, editor da revista Philia e docente da Casamundi Cultura
Em março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto de covid-19 havia se tornado uma pandemia. O novo coronavírus, inicialmente registrado na China, ganhava novo estatuto epidemiológico. Perdendo sua precisão geográfica, acelerava seu contágio e evidenciava a transmissão comunitária. O vírus se fez senhor do espaço e do tempo, ganhando o mundo. O contágio pelo corpo atesta agora nossa profunda conexão biológica e social. No encontro público, os corpos se tocam, trocam linguagem e afeto, deixam uns sobre os outros seus rastros biológicos. É na vida em comum que ficam vestígios, marcas de intimidade e de cosmopolitismo contemporâneo: viramos nós os vetores.
O livro Sopa de Wuhan – Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemia, publicado pela Pablo Amadeo com o apoio da Editorial Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio (Aspo), atenta para a necessidade de repensarmos a vida e as sociedades em 2020. O e-book gratuito (distribuído via redes sociais a partir dos perfis do editor no Instagram e no Facebook) é uma compilação de textos jornalísticos, ensaísticos e filosóficos de vários pensadores, todos em língua espanhola, escritos a partir de fevereiro. Os textos, além de tentarem organizar a linha do tempo dos debates sobre a covid-19, também procuram pensar nas polêmicas da doença e no futuro pós-contágio. O título irônico brinca com aquela polêmica absurda que atribuiu a origem do vírus ao fantasioso ensopado de morcego. Frente a ele, nosso gosto ocidental colocou em marcha seus silenciosos atavismos racistas e não se contentou em torcer o nariz ou fazer esgar de nojo, fantasiando nele a origem de todo o novo mal. E o consumidor asiático foi transformado então no bode expiatório para a purgação xenofóbica de algo mais profundo.
Ostracizado, rebaixado à vermina, o estrangeiro foi assim destituído de sua relevância em nossa formação pessoal e coletiva. E a solidariedade foi por água abaixo. Por um misterioso mecanismo, deixou de ser aquele que traz consigo a alteridade e enriquece nossa existência e pensamento para se tornar o inimigo público da assepsia moral. Alguns de nós viram a abominável cena: a respeitável senhora no metrô vociferando absurdos racistas contra uma passageira de ascendência asiática. A imagem nos lembrava o que todos já sabemos, embora alguns ainda ousem defender o indefensável: de tudo o que o racismo operou e ainda opera na História. No final dos 1970, por exemplo, com o aparecimento da aids, o bode expiatório foram os homossexuais (e há um resquício disso ainda hoje nas políticas de doação de sangue). Em nossa História, fomos e ainda somos impactados, sobretudo em tempos de crise, pelo que Cida Bento em sua tese chamou de “pacto narcísico”, ao se referir à branquitude brasileira e seu papel na manutenção das heranças coloniais, com a assimetria entre brancos e negros. Não parece mais possível discutir hoje as pandemias sem levar em conta as múltiplas desigualdades que ainda nos marcam. Logo, a quem serve não fazer avançar essa pauta?
Por trás da suposta sopa de morcego, surge o racismo fantasiado também de gosto, de hábito alimentar. Em Porto Alegre, capital churrasqueira, soará certamente como heresia perguntar justo agora sobre o consumo animal. Mas a pergunta está aí. Qual a diferença entre comer um morcego e comer uma vaca? Ora, a aftosa também causa dor de cabeça à epidemiologia mundial. Portanto, a questão não é o contágio de doenças, mas de outra ordem. Terá a ver, de certo, com o que Freud cogitou em sua psicologia social, quando pensou sobre como as sociedades escolhem certos inimigos. De fato, parecerá mais cômodo falar mal do vizinho do que ver a disfuncionalidade dentro da própria casa.
O racismo, enquanto fenômeno filosófico, certamente passa por aí. Não existem hábitos alimentares elevados ou inferiores. Como não existem altas ou baixas culturas, costumes e artes. Essas afirmações são falaciosas. O vegetarianismo, por exemplo, é uma escolha que, como o carnismo, tem suas implicações. Relevante ao debate, contudo, é explorar quais delas são virtuosas e quais não são, e o que entendemos hoje por virtuoso. Zizek, um dos autores de Sopa de Wuhan, aponta o contágio ideológico racista e suas conspirações paranoicas com a covid-19. Agamben, no mesmo livro, fala sobre o medo criado pelas narrativas nos cidadãos. O medo, que parece sempre algo privado, já foi pensado por Hobbes como um afeto que nos leva à criação do próprio Estado e que, portanto, organiza-nos. Para o filósofo do século 17, o medo é algo que nos leva à sociedade, a fim de evitá-lo. Sem Estado, resta o caos.
Quem hoje segue as recomendações dos órgãos de saúde e está em isolamento social depara com desamparos e medos diferentes, íntimos e sociais. Os brasileiros, afeitos ao lema de que a vida é a arte do encontro, parecem não reconhecer no isolamento benção sequer. Mas há, pelo menos, uma. E Sopa de Wuhan oportuniza encontrá-la. Para todos nós se coloca hoje a urgência do próprio pensamento. E, ainda que isolados, precisamos pensar juntos. Nestes tempos em que o desamparo nos visita, importa pensar no futuro a ser construído e em como podemos ser solidários. Embora a crise sanitária agudize a econômica, não há comparação entre a economia e o inflexível preceito da dignidade humana. Ou pensamos nisso agora, ou liquidaremos de vez a ideia de que toda vida humana importa. Não há economia para quem está morto – indicativo da irredutível importância da vida e de que a economia não deve ser nem autônoma nem autorregulada, cogumelo que do dia para a noite brota no gramado. Hannah Arendt nos indica um caminho: o que faremos para que, por meio da reflexão e do pensamento, comecemos de novo, comecemos o novo? Que não se comece pelo racismo e pela desigualdade é o mínimo.
Sopa de Wuhan – Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemia
Pablo Amadeo e Editorial Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio (Aspo), 188 páginas, e-book gratuito distribuído via redes sociais a partir dos perfis @pablo.amadeo.editor (Instagram) e @pabloamadeo.editor (Facebook). Trata-se de uma compilação de artigos escritos por 15 filósofos, entre os quais Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Judith Butler, David Harvey, Han Byung-chul e Alain Badiou, entre 26 de fevereiro e 28 de março. Contém textos apenas na língua espanhola.