Lançando em 1947 e com vendas multiplicadas este ano em meio à pandemia de coronavírus, A Peste é uma obra atemporal. O livro escrito por Albert Camus, apontam especialistas, dialoga com a contemporaneidade de incertezas.
A Peste aborda as consequências de uma epidemia que atinge a cidade de Orã, na Argélia, narrando o início, ápice e fim do surto ao longo de 10 meses. Centralizada na figura de um médico, a obra narra a história de pessoas contaminadas, que morrem aos milhares, lutam contra a doença e se isolam.
Conhecido também por obras como O Estrangeiro (1942) e O Mito de Sísifo (1942), Camus rejeitava o rótulo de filósofo e existencialista em suas obras. Abordava o absurdo na vida. Quando publicou A Peste, era possível captar uma analogia com a recente a ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial.
– Também durante a ocupação, os franceses encontravam-se em um lugar sitiado, conviviam com o risco de morte, tinham a liberdade restringida. Era como se fossem estrangeiros em sua própria terra tomada pela “peste marrom” do nazismo – explica o pesquisador de Camus Raphael Luiz de Araújo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Os Primeiros Cadernos de Albert Camus.
Araújo aponta que, com o passar dos anos, o clássico foi recuperado em outros momentos de calamidade social, como é o caso do aumento de vendas do livro quando houve o acidente nuclear na usina de Fukushima, no Japão, em 2011.
Ricardo Barberena, professor da Escola de Humanidades da PUCRS, avalia que A Peste dialoga com um sentimento de absurdo do cotidiano transformado pela pandemia.
– Não sabemos da onde vem esse inimigo invisível, que acaba questionando toda uma forma de pensar, de sentir e de construir uma identidade contemporânea. A Peste carrega consigo um sentimento de castigo e punição por algo que foi feito de forma indevida por toda a humanidade – aponta.
A Peste é um romance que explora o debate acerca da condição humana frente à assustadora situação que se apresenta, como indica o escritor e professor do curso de Letras da Ulbra Ítalo Ogliari. Ele aponta que elementos como a solidão, o medo, a morte, a fé, a solidariedade, a coletividade e até mesmo o moderno mundo do consumo, da imprensa e do capitalismo têm espaço no enredo.
– Isso tudo faz com que o diálogo com nosso tempo e com o que hoje estamos vivendo não seja outro senão o de possibilitar a reflexão sobre o próprio homem, seu modo de vida, sua cultura e suas práticas – conclui Ítalo.
Hábitos rompidos
André Guerra, psicólogo e mestre em psicologia social pela UFRGS, realça uma afirmação de Camus: “O ser humano começa a viver antes de começar a pensar”. Para Guerra, o escritor expõe em A Peste um inimigo invisível que está sempre à espreita de todos nós: o hábito.
– Camus aponta insistentemente para o papel que o hábito desempenha em nossa vida cotidiana. Ele reflete sobre a facilidade com que nos habituamos a viver como vivemos, a raciocinar como raciocinamos, a desejar como desejamos – diz.
Segundo Guerra, a peste retratada no livro pode simbolizar uma ruptura no qual todos os hábitos são abruptamente dissipados:
– Muitas das coisas que até então valorizávamos acima de todas as outras simplesmente se esvaziam de sentido. Até duas semanas atrás, o que era tomado como natural, hoje é incerto. Esse sentimento é justamente aquilo que Camus denomina de “exílio”, outra temática muito presente desde seus primeiros escritos.
A sombra da peste
Araújo lembra que no início da peste na narrativa, o governo demora a agir, etiquetando a doença de maneira eufemística e condenando a cidade ao aumento das mortes. A (falta de) decisão das autoridades é trágica.
– A doença também não poupa os mais abastados. A vida de todos é transformada. A morte transborda em cemitérios superlotados e em dados estatísticos de jornais – atesta.
Para o pesquisador de Camus, a doença é como uma sombra projetada sobre as pessoas para esconder suas verdades, aquilo que cada uma tem de humano:
– Hoje, a peste está nos discursos mentirosos dos governos, nas fake news, na negação da ciência, no ataque ao jornalismo.