Rubem Fonseca morreu nesta quarta-feira (15), aos 94 anos, após um infarto. Considerado um dos maiores escritores do Brasil, ele foi levado ao hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, mas não sobreviveu. Em julho de 2011, ele lançava dois livros com propostas distintas.
As Axilas e Outras Histórias Indecorosas é uma coletânea de 18 histórias curtas, gênero no qual Fonseca é reverenciado como mestre e que ajudou a elevar a um novo patamar.
José é um breve livro de memórias. Nos textos abaixo, que foram publicados na ocasião, os jornalistas de Zero Hora Ticiano Osório e Carlos André Moreira escrevem, respectivamente, sobre os contos e as memórias do escritor.
O Escritor mais Imitado
TICIANO OSÓRIO
Rubem Fonseca é o mais imitado escritor brasileiro. É imitado até por ele próprio. A enorme influência de Rubem, 86 anos, na formação de outros autores pode ser comparada à de Philip Roth, 78 - com a diferença brutal de que o americano de Newark ainda hoje assombra, enquanto esse carioca por adoção é uma sombra de seu passado.
Um passado que iluminou a literatura brasileira com volumes de contos como Os Prisioneiros (sua estreia, em 1963) e o seminal Feliz Ano Novo (1975), pela mistura de barbárie e erudição,linguagem chula e citações cultas,humor ácido e crítica social. Mas qual foi o último grande Rubem Fonseca? Já vai tempo, e o posto não será de Axilas e Outras Histórias Indecorosas (Nova Fronteira, 208 páginas), ainda que se garimpe um punhado de joias entre suas 18 histórias.
O livro começa com o pé direito: Sapatos, narrado por um cara que arranja serviço de porteiro graças aos calçados que sua mãe, empregada de ricaço, lhe conseguiu, tem prosa escorreita e desfecho inesperado.Mas não é um cartão de visitas correto: não há homicídio, ao contrário do que se verá já a partir da segunda história - ao longo de 12 contos, 22 assassinatos são descritos ou sugeridos. O brabo é que Rubem acerta mais a mão quando mira em outra direção - se destacam ainda Gordos e Magros, sobre um obeso que se apaixona pela cliente de uma chocolateria, e A Mulher do CEO,sobre um executivo que se apaixona...pela mulher do CEO, obviamente.
Não é que as narrativas mais criminais deixem de provocar impacto - Axilas, por exemplo, já se inicia com uma divertida e impublicável digressão sobre as partes do corpo feminino mais atraentes; Confiteor e O Misantropo têm uma escalada de agressões irresistível. Mas, no conjunto, esses contos, quase todos protagonizados por misantropos, parecem um xerox de Rubem Fonseca, uma mistura de erudição enfadonha e violência previsível. O autor até se repete: em Paixão, uma personagem diz:"A coisa que mais acaba com o amor é duas pessoas viverem juntas". Em Confiteor, o narrador ecoa:"A coisa que mais acaba com o amor é o fato de os amantes morarem juntos". Sem condescendência - que essa palavra nem existe no dicionário de seus personagens -, dá para dizer: se você procura diários de homens que, mais do que se adaptar à sociedade,tentam adaptar a sociedade a eles,vai encontrar mais profundidade, sarcasmo, surpresa e contundência nos gibis do Justiceiro escritos por Garth Ennis e nos episódios do seriado Dexter.
Voz rascante para memórias suaves
CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Ao longo de quase 50 anos de carreira, Rubem Fonseca construiu uma voz personalíssima: seca, rascante, direta, muitas vezes ausente de qualquer emoção, que flerta com algumas construções arcaicas e termos obscuros ou técnicos. Não deixa de ser um dos grandes atrativos de José, conferir como essa voz se aplica ao território sentimental por excelência da memória. A resposta é: muito bem. Aplicando ao terreno do passado um tom cru e digressivo, expresso em frases curtas, e tratando a si mesmo na terceira pessoa, Fonseca dribla o recorrente pecado de autobiografias: um exagerado sentimentalismo que descamba ora para a complacência do "livro de panegíricos", para usar o título de um conto seu, ora para o francamente piegas.
José (Nova Fronteira, 160 páginas) entrega exatamente o que o título promete. Não são as memórias do escritor Rubem Fonseca, e sim do menino e rapaz José (prenome do autor) - as recordações se interrompem antes do personagem, já formado advogado e criminalista promissor, fazer 30 anos. Rubem vai contrariar o futuro daquele José para se reinventar como um dos grandes autores nacionais - e isso,em seu entender, é outra história.
Nascido em Juiz de Fora (MG), filho de um casal de portugueses, o garoto José vive de modo privilegiado até que o pai, comerciante varejista, precisa encerrar o negócio para honrar os compromissos com credores,e a família, abruptamente empobrecida, se transfere para o Rio. Com a mudança, José descobre a Capital Federal dos anos 1930 e 1940, pela qual caminha obsessivamente - caminhar continuaria sendo um hábito que Rubem levaria por toda a vida, e que marcaria personagens de contos como Fevereiro ou Março e A Arte de Andar pelas Ruas do Rio de Janeiro. Ele escreve:"Naquela cidade,no Rio de Janeiro, José descobriu a carne, os ossos, o gesto, a índole das pessoas; e os prédios tinham forma, peso e história".
Mais que um livro de memórias, José é um catálogo de afetos, recuperando o nascimento de outras paixões que acompanhariam Rubem: os livros (o autor teria aprendido a ler sozinho, aos quatro anos), as mulheres (José dá o testemunho dos primeiros fascínios com o feminino), o Carnaval (especialmente o de rua, cujo fim ele deplora). Memórias entremeadas com digressões sobre monarquia, história portuguesa, Elias Canetti, Amos Oz - porque José ainda é Rubem Fonseca.