Luiz Ruffato vem se dedicando há duas décadas a fazer um mapeamento ficcional da classe operária brasileira. É esse o foco do polifônico Eles Eram Muitos Cavalos, um panorama do caos de São Paulo ao rés do chão, e do ciclo Inferno Provisório, cinco romances sobre a industrialização brasileira pelo ponto de vista de gerações de operários originalmente da cidade mineira de Cataguases.
O lançamento de seu mais recente livro, A Cidade Dorme, é uma oportunidade para uma mirada de conjunto sobre como esse projeto se transplanta para as dimensões restritas do conto.
A Cidade Dorme reúne 20 contos – ou 19 contos e uma novela que ocupa quase um terço do volume, se você for ligado em discutir essas coisas de modo mais específico. Quase todos já haviam sido publicados antes em coletâneas temáticas ou veículos de imprensa, o que explica sua variedade estilística. A unidade se dá pela fidelidade temática ao projeto de Ruffato, a reinvenção da vida operária.
Os contos reunidos em A Cidade Dorme se espalham por angústias e esperanças de quem vive no andar de baixo: o trabalho árduo (em Minha Vida, por exemplo) o rádio como entretenimento (A Voz), o futebol como escapismo e identidade (Bandeira de Luz e Cantos), a desagregação familiar provocada pelo alcoolismo (Promessa), a luta contra a ditadura (O Dia em que Encontrei meu Pai e Sem Pensar) e até mesmo a forma atabalhoada e desumana como os imensamente pobres são obrigados a viver seu luto (A Menina). São contos que transitam da primeira pessoa escrita em uma prosa com fina sensibilidade para a fala popular a uma linguagem ao mesmo tempo seca e experimental, que busca o poético pela concretude de substantivos. Chama a atenção que a maioria dos contos parece interromper-se em um momento crucial, fazendo da ambiguidade e da incerteza seu maior subtexto.
E há ainda, no meio disso, o curioso Relato de Juan de Cartagena, uma carta de um tripulante amotinado dos navios conduzidos por Fernão de Magalhães na primeira circunavegação do globo, entre 1519 e 1522. No breve relato, Magalhães é mostrado como um comandante imperito, autoritário e traiçoeiro, uma caracterização que pode ser estendida como metáfora à própria formação da América colonial e sua mitologia histórica. E que dialoga com uma epígrafe de Jorge de Lima que o próprio Ruffato já havia usado no primeiro volume da série Inferno Provisório: "Também há as naus que não chegam/ Mesmo sem ter naufragado:/ (...) simplesmente porque/ já estavam podres no tronco/ da árvore de que as tiraram". Uma conexão entre a aflita vida dos desvalidos mostrada no livro e a própria origem do empreendimento Brasil, também ele fadado a interrupções e ambiguidades em cenas cruciais.