A tensão política não passou longe da literatura nesta quarta-feira na Praça da Alfândega. A cerimônia de abertura da 63ª Feira do Livro de Porto Alegre foi marcada por protestos e discursos sobre o papel transformador da educação e a importância da liberdade de expressão.
Pouco antes do início dos discursos, às 19h, dezenas de manifestantes se postaram com bandeiras do Cpers-Sindicato ao lado do Teatro Carlos Urbim, maior tenda da Feira, que sediava a solenidade. Enquanto a atriz Mirna Spritzer tentava ler um texto sobre o deus Odin, em homenagem aos países nórdicos, o público do protesto bradava "Fora Marchezan" e "Fora Sartori", além de tocar sinetas. "Servidor sem dinheiro, comércio na pindaíba" e "Marchezan contra o comércio" também estavam entre as frases que estampavam cartazes.
Com o início do Hino Nacional, a manifestação se dispersou pelas alamedas da Alfândega.
– Não importa de que partido ou ideologia seja, ninguém vai parar um evento público e popular como a Feira do Livro – discursou Marco Cena Lopes, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro. – Não vai ser com grito, blasfêmia, ódio ou radicalismo que vamos corrigir esse país, mas com educação.
A própria homenagem, nesta edição da Feira, aos países nórdicos, grupo formado por Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia, também foi alvo de críticas. Algumas pessoas mais exaltadas criticavam o gesto, pedindo o reconhecimento de outras culturas, como a africana. Enquanto Cíntia Moscovich, patrona da edição de 2016, discursava, um manifestante exaltado na plateia reclamava que até Odin fora homenageado, em vez dos orixás. O descontente só silenciou após reprimenda da escritora.
– Nós aqui somos todos professores. Respeita a arte – disse Cíntia, sendo muito aplaudida.
Pela primeira vez na história da Feira do Livro, o mais prestigiado posto do evento foi repassado de uma mulher para outra. Cíntia Moscovich transmitiu o cargo para a colega Valesca de Assis, escolhida como a homenageada deste ano.
A passagem do cargo foi mais um passo para a tentativa do escritor Airton Ortiz estabelecer uma nova tradição na Feira do Livro. Ao repassar o cargo para o poeta Dilan Camargo, em 2015, Ortiz deu a ele uma chave dourada e disse em seu ouvido algumas “palavras mágicas”. Segundo o autor, o objeto, combinado com uma frase secreta, conhecida apenas pelos patronos, é capaz de abrir “um portal para outra dimensão” na Praça da Alfândega.
A história, tema do livro O Guardião da Chave Dourada, que Ortiz lançará na Feira neste ano, é uma metáfora para o poder da leitura em representar diferentes realidades. Valesca de Assis foi a terceira a receber o item dito mágico. Seu discurso foi aplaudido pelos manifestantes, ao chamar a Feira de evento de “resistência”, que privilegia “o humanismo antes do lucro”:
– Somente a leitura, implícita na formação familiar e escolar, poderá salvar nosso país e nosso povo.
Até o embaixador da Noruega, Nils Gunneg, saiu do protocolo por conta dos protestos. A cerimônia previa apenas um discurso decorado em português, mas Gunneg pediu o auxílio de um tradutor para improvisar algumas palavras:
– É compreensível que as pessoas tenham diferenças de opinião e as expressem, até mesmo em lugares que não são os mais adequados, onde não dizem nada às pessoas presentes. Mas quero dizer que já servi em países em que isso não é permitido. E essa é uma grande diferença.