Subindo as escadas rumo ao Foyer Nobre do Theatro São Pedro, em Porto Alegre, uma placa dourada na parede de homenagens eterniza a gratidão a um artista que lutou, nos anos 1980, pela reforma do espaço cultural que tanto amava, aangariando fundos por meio de um espetáculo. Décadas depois, o palco da casa volta, mais uma vez, a sentir a presença de Jô Soares com Gaslight — Uma Relação Tóxica, última peça que dirigiu antes de falecer em agosto — e que agora carrega também uma homenagem ao diretor. O público gaúcho terá a oportunidade de assistir ao espetáculo nesta sexta-feira (27) e no sábado (28), às 21h, e no domingo (29), às 20h.
Produtor e protagonista da peça, Giovani Tozi, 39 anos, destaca que é motivo de grande felicidade apresentá-la no São Pedro devido à conexão entre o teatro e Jô. E a capital gaúcha será a primeira cidade a receber o espetáculo fora do Estado de São Paulo, inaugurando a turnê nacional de maneira simbólica.
— Imagina o privilégio, eu idealizei esse projeto ao lado dele, e ver isso agora rodar o Brasil é a maior satisfação que eu posso ter na minha vida profissional. Acho que nunca mais vai acontecer isso, porque está vindo do mestre. Para mim, ele é o maior mestre, e eu ouso dizer que eu acho difícil que o Brasil produza outro artista como ele — pontua.
O espetáculo é adaptação de um grande sucesso e uma das peças mais encenadas da Broadway. Foi escrito originalmente pelo dramaturgo britânico Patrick Hamilton (1904-1962), em 1938, ano em que estreou no Richmond Theatre. No Brasil, teve uma montagem notável em 1949, no TBC. Desta vez, Jô Soares assina a tradução, adaptação e direção do texto, com colaboração de Matinas Suzuki Jr. e Mauricio Guilherme.
Tozi trabalhou com Jô em diversas ocasiões e desenvolveu pesquisas sobre o amigo no mestrado e, agora, no doutorado. A montagem foi idealizada pelos dois em 2018, na casa do apresentador, durante uma sessão de cinema da adaptação dirigida por George Cukor em 1944 — exibida no Brasil como À Meia-luz —, que rendeu a Ingrid Bergman o Oscar de melhor atriz. O espetáculo marcaria a volta de Jô ao teatro, quatro anos após dirigir e atuar em A Noite de 16 de Janeiro, e foi acompanhado de perto pelo humorista, que trabalhou na concepção até os últimos dias.
Baseada no filme sobre abuso psicológico nos relacionamentos afetivos, Gaslight — Uma Relação Tóxica retrata um casal em conflito. Jack (Giovani Tozi), no início do casamento, se mostra doce e apaixonado. No entanto, sob a alegação de que sua mulher, Bella (Erica Montanheiro), sofre de algum tipo de desequilíbrio mental, acaba se revelando um homem impaciente e menos cordial. A esposa sente que está enlouquecendo, mas, ao buscar o amparo do companheiro para lidar com a suposta doença, encontra apenas a resistência do homem, que justifica não ter mais forças para lidar com a situação.
A trama deu origem ao termo gaslighting, que se refere a uma forma de abuso psicológico na qual o agressor faz com que a vítima duvide de si mesma e de sua sanidade.
A complicação do diagnóstico de Bella é acompanhada de perto pela governanta Elizabeth (Neusa Maria Faro) e pela jovem e extrovertida Nancy (Maria Joana), a nova arrumadeira do casarão. Além disso, Ralf (Gustavo Merighi), um inspetor de polícia, tem uma ligação curiosa com a casa agora habitada pelo casal. Essa relação pode despertar fantasmas do passado que ainda habitam os cômodos com seus segredos e revelar surpresas.
Por ser idealizador e protagonista, a responsabilidade que recai sobre Giovani Tozi é dupla. Em outras circunstâncias, avalia ele, estaria receoso de assumir esses papéis conjuntamente. Entretanto, avaliando que o projeto surgiu de maneira natural e é produzido por amigos e parceiros e, sobretudo, com a chancela de Jô, cujo julgamento era crítico, Tozi se diz confiante em abraçar a oportunidade.
Ele aponta que a montagem difere de outras por dois motivos. Primeiramente, há um "toque de genialidade" de Jô, como sinaliza, com um cenário que não é de todo realista, sendo composto por uma teia de aranha de 14 metros que cobre o palco — uma referência ao detalhe de que quem está em uma relação abusiva não percebe que está preso, sem forças para se desvencilhar. O elemento ajuda a criar um clima diferente para a peça, de suspense, que dialoga com os livros do também escritor.
O outro motivo é a risada. Apesar de abordar um assunto pesado, a peça é permeada pelo humor — algo difícil, mas que condiz com a marcante característica das produções do humorista. E o público pode esperar dar gargalhadas, garante Tozi.
— A peça é a cara do Jô Soares. Todo mundo que foi assistir falou: "Meu Deus, é incrível como eu vejo o Jô em tudo aí" — ressalta Tozi, lembrando que o diretor, assim como em suas outras atividades, era sistemático e organizado.
Processo interrompido
A encenação já estava idealizada, inclusive o cenário, quando Jô partiu, aos 84 anos. Ele não chegou a ver os atores caracterizados. Após a despedida, a equipe decidiu que a melhor forma de homenageá-lo seria não adiando os planos. Assim, Mauricio Guilherme assumiu de vez a direção que compartilhava com o multiartista, que viveu intensamente para o trabalho e abraçava o mote "o show tem que continuar", até mesmo quando o filho morreu. Homem de muitos talentos, Jô explorou diferentes áreas com maestria: foi apresentador, humorista, ator, diretor e escritor.
O amigo e colega é grato a Jô Soares e associa a ele a característica de mudar a vida das pessoas ao incentivá-las.
— Eu não seria o que eu sou hoje se o Jô Soares não tivesse passado pela minha vida. Tudo eu devo a ele — diz Tozi.
E a peça, agora, torna-se uma homenagem ao diretor que saiu de cena mas deixou saudade. Surpresas aguardam o público, que procura o espetáculo para abrandar a falta do intelectual e compreender o que se passava em sua mente genial.
Por esse motivo, cada apresentação é carregada de emoção para o elenco que trabalhava próximo a essa personalidade tão querida no Brasil. Para Tozi, ter atuado ao lado do Gordo nesse projeto derradeiro oportunizou ter mais um pouco dele em sua vida.
— E ele está ali. A arte desse cara é para sempre, são inúmeras as contribuições. Então, a peça, último trabalho do Jô no teatro, acho que acaba sendo esse testamento artístico desse cara, que deixou aí para todo mundo curti-lo mais um pouco — finaliza.
Gaslight - Uma Relação Tóxica
- Nesta sexta-feira (25) e no sábado (26), às 21h, e no domingo (27), às 18h.
- Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 50, à venda pelo site.
- Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante e acompanhante.