A clássica Longa Jornada Noite Adentro, uma das maiores obras do dramaturgo norte-americano Eugene O'Neill (1888-1953), chega a Porto Alegre neste final de semana com três apresentações no Theatro São Pedro (confira serviço ao final do texto). O espetáculo é uma versão idealizada, traduzida e dirigida por Sergio Módena e conta com a atriz Ana Lucia Torre no papel principal. A história mostra o drama e os conflitos dos Tyrone, uma família disfuncional.
O texto é um depoimento autobiográfico de O'Neill — vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1936 —, marcado pelo realismo, um movimento literário e artístico que lança um olhar mais objetivo sobre a existência. A obra, vencedora do Prêmio Pulitzer em 1957, é considerada uma das mais relevantes do teatro do século 20, marcando, para diversos críticos, o surgimento do teatro moderno nos Estados Unidos.
— Eu acho que as pessoas vão refletir sobre as relações e se emocionar de uma forma que só o teatro consegue dar para a gente. Eu testemunhei isso todas as noites, é uma peça que realmente emociona o público — salienta Módena.
Longa Jornada Noite Adentro é um drama familiar que se passa em 1912, em um único dia, na casa de veraneio dos Tyrone. O patriarca, James, é um idoso que há muito abandonou as aspirações de ser um grande ator, optando por viajar apresentando sempre a mesma peça, que lhe rende um bom dinheiro. Sua esposa, Mary, largou seus sonhos de se tornar atriz ou freira para acompanhar o marido. Porém, sem entender muito sobre a droga receitada para acalmar suas dores, tornou-se viciada em morfina com o nascimento do filho mais novo, tendo pouco ou nenhum contato com a realidade. Apaixonada pelo marido e pelos filhos, tenta esconder o vício da família.
O casal tem dois filhos: o mais velho, Jamie, é um ator fracassado que foi "forçado" a seguir os passos do pai e se tornou um alcoólatra, pois não era capaz de se manter em nenhum outro emprego. Ele tem inveja do talento do irmão mais novo, Edmund, um jovem que pretende se tornar escritor, mas pode ter a carreira abreviada pela tuberculose. Este, porém, influenciado pelo irmão mais velho, também envereda pela bebida, pois se sente culpado pelo vício da mãe. Ao longo do dia, enfrentamentos constantes vão revelando, gradativamente, o passado turbulento dos Tyrone.
A premiada atriz Ana Lucia Torre, 77 anos, interpreta Mary. Ao longo da peça, o público assiste à transformação da personagem, que, no começo, está relativamente estável, mas, ao final, já está totalmente tomada pela droga.
— É difícil interpretar esse papel, porque demanda um esforço bastante grande. Ela tem momentos de tranquilidade e em dois, três segundos já está surtando — aponta Ana Lucia. — É extremamente interessante para mim, um prazer fazer a Mary Tyrone. Ela vai perdendo o controle. Totalmente. E aí quando ela toma a droga, aparentemente, ela se controla da crise. Mas ela vai para um lugar onde só ela tem espaço, ela não vê mais nada, só entra em delírio.
O espetáculo conta ainda com as atuações de Luciano Chirolli (James), Gustavo Wabner (Jamie), Bruno Sigrist (Edmund) e Mariana Rosa (Cathleen, a criada da casa).
Ana Lucia revela um fascínio por O'Neill, a quem considera um dos maiores dramaturgos, e um desejo antigo de interpretar uma de suas personagens, o que não havia feito até então. Em sua opinião, Mary é um dos personagens mais fantásticos da dramaturgia mundial, o que a deixou profundamente empolgada com o convite para assumir o papel.
— Atrizes muito expressivas do mundo todo já fizeram esse papel, e aqui no Brasil também já foi feito por grandes atrizes. Então, além de ter ficado muito feliz por ter sido escolhida, eu sabia que era uma responsabilidade absurda, porque eu tinha de seguir a trajetória dessas grandes atrizes — frisa.
Em 1962, o texto ganhou uma versão para o cinema, com Katharine Hepburn no papel principal, o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar e o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes.
Ana Lucia conta que também está muito feliz em voltar ao teatro — esta é sua primeira peça após a pandemia. O público também estava ávido por esse retorno e tem correspondido às expectativas lotando as salas, conforme a intérprete de Mary.
Montagem
Realizar o espetáculo era um desejo antigo do diretor Sergio Módena. Ele explica que adaptou a peça, deixando o que considera que se comunica melhor com o público nos dias de hoje, condensando a ação dramática em quase duas horas. O texto, porém, segue preservado em sua essência, abordando os conflitos de uma família disfuncional de forma perfeita, conforme o diretor.
Para Módena, o que difere nesta montagem é a maneira como a peça é encenada. Apesar de manter o ano da ação, 1912, a produção buscou quebrar a reprodução histórica detalhista dos personagens e da casa de veraneio por meio da cenografia, dos figurinos e da trilha sonora.
— A gente acabou trazendo um cenário que é bem metafórico, ele é todo branco, dentro de uma estrutura circular, como se esses personagens estivessem exercendo esse embate familiar dentro de uma jaula. Muitos elementos de cena acabam funcionando através da metáfora. A gente começa o espetáculo com todos os móveis da casa cobertos por um véu gigante, que também simboliza o nevoeiro que tanto é falado na peça — destaca.
Portanto, como indica o título, à medida que a noite se aproxima, o nevoeiro vai se adensando — ao mesmo tempo em que os conflitos familiares vão aumentando, sugerindo que as feridas da família Tyrone são incuráveis.
Na visão do diretor, mesmo tendo sido escrita em 1941 — e liberada para leitura e montagem apenas após a morte do autor —, os dramas e questionamentos existenciais expressados na peça continuam. Longe de ser um drama burguês, é um retrato cruel da vida real e da alma humana — uma tragédia contemporânea.
— Não importa quanto tempo passe, porque vai se falar sobre a possibilidade de perdão, sobre culpa, sobre a dificuldade da comunicação familiar, que são coisas que nos atravessam, não importa em qual localidade do mundo você esteja. E é uma coisa muito potente da peça — ressalta Módena.
O diretor destaca que O'Neill escreve sobre seres humanos, mágoa, rancor — coisas que aconteceram no passado e das quais não conseguimos nos livrar. Por ter tido uma relação conturbada com os familiares, o autor escreveu a peça para perdoar a própria família e se perdoar. Portanto, afirma Módena, em alguma medida, o público se identifica com as relações mostradas, tornando-a uma peça altamente popular.
— Eu acho que essa é a grande catarse da peça. Quando chega no final, a gente acaba perdoando aqueles personagens. A gente entende por que eles são daquela forma, as contradições deles —avalia.
Em uma época de relações deterioradas e dificuldades de comunicação, a peça, apesar de mostrar o sofrimento, aponta a possibilidade do perdão como o único jeito de absolver as pessoas e se libertar. Além disso, segundo o diretor, a mensagem do espetáculo toca o público de maneira diferente após a crise sanitária, que obrigou uma aproximação forçada em alguns casos. Ressalta que, diversas noites, algumas pessoas saíram emocionadas, com um sentimento de libertação, conforme os relatos.
Theatro São Pedro
Com dois gaúchos em cena (Mariana e Wabner), o elenco está "animadíssimo" e aguarda com ansiedade para trazer o espetáculo a Porto Alegre — sobretudo pelo local de exibição. Ana Lucia considera o Theatro São Pedro o "teatro mais perfeito do Brasil". Além da apresentação no espaço icônico, Módena destaca a importância de levar teatro a outras praças que não apenas Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente em uma cidade com uma potência cultural tão grande como Porto Alegre.
— Para nós, além de ser uma honra, é um desafio incrível. Ouvi do público ainda esta semana, aqui em São Paulo, uma pessoa que disse: "É bom voltar assistindo a uma peça que é puro teatro como sempre foi feito, de texto incrível, direção incrível, atores completamente integrados e competentes dentro daquela história". E é isso que nós queremos levar para Porto Alegre — completa Ana Lucia.
"Longa Jornada Noite Adentro"
- Nesta sexta-feira (9) e no sábado (10), às 21h, e domingo (11), às 18h.
- Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°, Centro Histórico), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 50, à venda pelo site
- Desconto de 50% para sócios do Clube do Assinante e um acompanhante