Dez anos depois de Os Bandidos, José Celso Martinez Corrêa retornou a Porto Alegre para apresentar a nova montagem de O Rei da Vela, originalmente exibida em 1967. As sessões ocorreram no sábado e no domingo no Teatro do Sesi (leia resenha).
Nome fundamental do teatro brasileiro moderno, Zé Celso, 81 anos, é uma verdadeira instituição da cultura nacional. Nesta entrevista, concedida na sexta-feira (19), em Porto Alegre, antes de um ensaio, ele fala sobre cultura e, como não poderia deixar de ser, do momento político atual.
Fazia 10 anos que você não vinha a Porto Alegre com um espetáculo. Na quarta-feira (17), você fez uma conversa aberta no Teatro Renascença. Como foi esse reencontro com o público da Capital?
Acho que vou começar a fazer programa de auditório (risos). Foi maravilhoso o pessoal comungando, com muita atenção e muito vibrante. Aliás, eu já tinha ficado apaixonado pelo que vi das manifestações que foram feitas aqui contra o fascismo. Achei forte, muito bom. Pode ser uma minoria, mas é uma minoria poderosa.
O que os artistas podem fazer pelo Brasil neste momento?
Arte, muita arte. Infelizmente, estamos numa situação muito difícil porque nossos políticos não têm talento. É um bando de canastrões. A política é uma arte, e os canastrões não a sabem. Só sabem de seus próprios interesses, suas próprias coisas. A cultura é uma coisa muito importante que foi praticamente tirada do ar durante muito tempo das eleições, substituída pela palavra educação, como se pudesse existir educação sem cultura. A cultura é mãe da educação.
Poderia explicar esta ideia?
Não existe educação sem cultura. (A cultura) Vem de uma vertente ligada à natureza, liberdade, prazer humano, às lutas humanas por vencer esse abismo enorme que existe em 2018, que é o momento de maior desigualdade e de maior reação fascista, reacionária no mundo. Exatamente por causa dessa desigualdade. A população está sofrendo muito, então (os governantes) não sabem o que fazer e arrocham, como aconteceu aqui (no Brasil). E começam pela saúde. Quer dizer, a intenção é matar. Inclusive fica óbvio hoje que essa direita que cresce no mundo não reconhece o regime (democrático), porque não aceita o adversário. Ela acha que o adversário tem que ser destruído. Isso é o oposto da vida humana, porque o seu adversário é com quem você troca.
A nova montagem de O Rei da Vela causa a mesma perplexidade no público do que a primeira, de 1967?
Mais, muito mais do que antes. Ela foi escrita (por Oswald de Andrade) em 1933, no começo da ascensão do nazismo e do fascismo. Ele publicou em 1937, perto do início da II Guerra Mundial. Estamos vivendo um momento muito semelhante. Não é só no Brasil, é no mundo inteiro. É uma onda muito forte fascista. É fascista, capitalista, financeirista. O mito atrás de tudo isso, na realidade, é o cifrão, o capital. É uma coisa totalmente inumana, uma máquina que espreme a gente, que pega o corpo da gente e tira a saúde, a educação, a cultura. Que baixa os salários violentamente, bota o povo lá embaixo e não tira um tostão do andar de cima. Quer dizer, a gente já vive um regime muito esquisito, totalmente parafascista. A SS está aí já. E a própria onda que foi criada é uma onda de ódio, é fabricada com muitos gramas de ódio. O ódio vem do ressentimento, é contra, não é a favor de nada. Falam que vão acabar com os artistas. Quer dizer, é uma coisa tão apavorante que já estou pensando que, se acontecer um troço desses, tenho que me picar.
Como assim?
Tenho que ir para o Uruguai ou Portugal, sei lá para onde. Porque não vai haver condições de viver no Brasil para pessoas da minha idade (81 anos), tendo que passar por um processo desses. Mas espero que isso não aconteça. Por isso, boto fé no fato de a gente estar na primavera, e o fato de ter muita gente nessa primavera, gente maravilhosa.
Como você se define politicamente?
Sou anárquico, autocoroado. Temos (no Teatro Oficina) uma gestão de democracia direta, de decisões rápidas entre as pessoas. Temos uma coisa maior que todos nós: o ato de fazer teatro, o ato de exercer a profissão.
O que você espera daqui para a frente?
Acho que a gente devia fazer um grande ato, uma manifestação cultural, uma frente democrática no sentido de um governo de coalizão, um governo que atenda todas essas necessidades que o Brasil tem de reformas que já devia ter feito há muitos anos. Aliás, estamos entre um Brasil nazista, fascista, atrasado, burro, e o Brasil que é realmente democrático no sentido de as pessoas poderem discutir as melhores soluções, os artistas criando. Porque a crise inspira o artista. E devia inspirar o político. Mas o político, em vez de se inspirar, vai para o lado oposto, se retira para o ódio, para o ressentimento, um dos sentimentos mais vis, como Nietzsche fala. E vivemos exatamente uma cultura de descobrir o outro, de trabalhar com o outro, seja o outro negro, índio, sapata, mulher, homem, brasileiro, estrangeiro.
Você está ensaiando uma nova versão de Roda Viva, de Chico Buarque, que resistiu a autorizar a remontagem. Como está sendo o processo?
Tivemos muita dificuldade de montar porque já está esse cerco à arte e à cultura. Não é mais o desprezo pela cultura e pelas artes. Nós somos considerados inimigos. Imagina, como pode um governo se considerar inimigo das artes? A arte vem da natureza. E talvez seja a coisa mais importante que existe. Porque é a arte dos ofícios, seja você jornalista ou quem quer que seja. Seja a arte do lavrador... Tudo isso é uma arte e pode ser feito com sabedoria e talento. Por isso, a cultura é importante. Ela desperta nas pessoas a percepção do mundo no sentido concreto. Tenho um grande interesse pelo social. Mas, além do social, nós todos, inclusive nossos adversários, fazemos parte desse universo. E a posição deles é destruir o meio ambiente, romper com o Acordo de Paris. Esse é um momento de sim ou não. A neutralidade eu acho um absurdo nesse momento. São pessoas que não sacaram ainda o que pode acontecer. Já está acontecendo.
Houve um episódio marcante em Porto Alegre em 1968, o ataque ao elenco de Roda Viva.
Pelo 3º Exército. Antes, tinha tido um ataque pelos paramilitares no Teatro Galpão, em São Paulo. Destruíram o teatro, bateram nas mulheres, na Marília Pêra. Depois, houve aqui (um ataque). Fiz a estreia no Teatro Leopoldina, depois voltei para São Paulo porque estava montando Galileu Galilei. Fui embora, e no dia seguinte o Exército invadiu o hotel onde eles (os artistas) estavam. As pessoas saíram do quarto, correndo pelas escadas, e eles mandando pau, batendo. Raptaram a atriz que fazia a protagonista (Elizabeth Gasper), o violonista (Zelão), queriam estuprar. E as pessoas berravam até por apoio de jornal. Depois, botaram todos no carro e voltaram para São Paulo, sangrando. Quando eles desceram, foi impressionante. Acelerou tudo. Estávamos montando Galileu Galilei, que eu achava que ia levar anos, e montamos em 15 dias. Fizemos uma excursão pelo Brasil em 1971 com O Rei da Vela, Galileu Galilei e Pequenos Burgueses, lutando o tempo todo contra a censura.
Você percebe a história do Brasil se repetindo?
Está se repetindo de maneira pior. Porque houve um avanço. Houve ascensão social, liberdade de arte, liberdade de costumes, de sexualidades, de ser o que se quer. Desencadeou essa onda sobretudo de defesa da tradição, família, propriedade e Deus, como diz a personagem que eu faço (na peça O Rei da Vela). Houve um avanço, várias primaveras. E essa primavera das pessoas que não estão querendo o retorno à ditadura, ao fascismo, é muito forte também. É pior agora porque está programado um governo de ódio, portanto, um governo que vai ser extremamente Tanatos, guiado pelo instinto de morte. E vai ser violentamente contra o instinto de vida, de Eros. É uma questão de vida e morte o que o Brasil está vivendo. De qualquer maneira, se eles tomarem o poder, vão ter que lutar muito para nos esmagar, porque não somos fracos. E não vão poder fazer isso que fazem com a espécie humana. E não só no Brasil, mas no mundo todo. É impossível. A natureza é mais forte.