Marcelo Ádams *
As apresentações do espetáculo teatral O Rei da Vela, em Porto Alegre, registram mais do que a comemoração dos 50 anos da estreia da produção original do Teatro Oficina, ocorrida em 1967. A remontagem, estreada em 2017 em São Paulo, novamente com encenação de Zé Celso Martinez Corrêa, de certa forma fecha o circuito que lhe deu origem, iniciado em 1958 em Porto Alegre, ao retornar à nossa cidade em 2018.
Há 60 anos, o encenador e cineasta italiano Ruggero Jacobbi (1920 – 1981) veio dar aulas no recém-fundado Curso de Arte Dramática da UFRGS (atualmente Departamento de Arte Dramática), naquele momento vinculado à Faculdade de Filosofia.
O porto-alegrense Luiz Carlos Maciel (1938 – 2017), aluno de Filosofia, teve acesso pelas mãos de Jacobbi a textos do paulistano Oswald de Andrade (1890 – 1954), entre os quais O Rei da Vela, escrito em 1933 e até então nunca encenado.
Anos depois, em 1966, Maciel conduzia os Laboratórios de Interpretação com o elenco do Teatro Oficina, que, naquele momento, entre o golpe militar de 1964 e o AI-5, vivia a incerteza de que rumo dar às criações. Maciel sugeriu então a Zé Celso e ao ator Renato Borghi o texto de O Rei de Vela. Timing perfeito: nasceria em breve um clássico do teatro brasileiro – Zé Celso o encenador e Borghi o protagonista.
Comparar a proposta de encenação de O Rei da Vela em 1967, um marco do nosso teatro, com a remontagem de 2017, não é a única maneira de atestar a importância que esta versão representa no atual momento político. A nova homenageia a anterior em efeméride redonda, mas adquire caráter quase profético ao trazer à cena algumas tensões que vivemos: (20)18 tem o seu brumário neste outubro.
A bruma, essa névoa que não só ameaça, mas embaça a visão de um futuro possível com liberdade e democracia, foi antropofagizada pelo Oficina em 1967 e jogada sobre nós em 2018.
A democracia é frágil como a chama de uma vela
É fascinante encontrar no texto de Oswald figuras e mentalidades como a da personagem Perdigoto – que elogia o militarismo como solução – surgirem tão vivas e preocupantemente atuais. O espetáculo é bastante fiel ao texto original, mas ganha, com a inserção de nomes de personalidades conhecidas e de situações recentes (os famosos “cacos”), adesão imediata dos espectadores. Por exemplo: Abelardo I, o protagonista usurário que não hesita em mandar matar, esbraveja que artistas devem ser deixados na miséria para que se mantenham “lacaios, obedientes”, o que faz recordar a onda puritana que tem na justificava capenga de defesa da família e dos bons costumes a desculpa rota para cancelar exposições de arte e impedir performances, como se viu recentemente.
“Num país medieval como o nosso”, diz Oswald, a “volta à vela” é um perigo que se avizinha. O Rei da Vela do Oficina estrutura sua debochada e exuberante encenação numa monumentalidade cenográfica com direito a palco giratório – mostrando que o mundo é um moinho, é um eterno retorno à vela – e trilha sonora com sonoridades que vão do samba ao operístico. As atuações defendem o derramado do melodrama e o burlesco das chanchadas. Se em 1967 o choque era causado por trazer ao palco palavras e ações incomuns para os padrões morais da época, ficamos chocados hoje ao perceber que a atualidade das críticas de Oswald/Oficina se mantém.
Não poderia haver momento mais propício para assistir a O Rei da Vela, às vésperas de eleições tão decisivas. Vela lembra velório: há risco real de que seja o da democracia e o da expressão livre da diversidade. Mas vela também remete ao verbo velar: proteger, vigiar, zelar. Precisamos velar pelas conquistas suadas e sangradas, que mulheres e homens nos legaram. Precisamos manter a democracia que tremula, frágil como a chama de uma vela sob o bafo zumbi da opressão torturadora. Precisamos fazer recuar, com a luz da razão, o obscurantismo que tenta sair das tocas com dentes arreganhados. De resto, poderá haver função mais bela para o teatro que ser o porta-voz perfeito de uma época? O Rei da Vela é.
* Doutor em Teatro, professor da UERGS e teatreiro.