A primeira impressão do leitor de O Oitavo Dia, biografia autorizada do jornalista e empresário de comunicação Nelson Pacheco Sirotsky, é de que se trata de uma obra singular. A surpresa começa por sua estrutura híbrida e movediça, estranha ao gênero. A autora, Leticia Wierzchowski, não apenas registra fielmente a vida do protagonista, a partir de vasto conjunto de depoimentos orais do mesmo, como cria inúmeras vozes ficcionais (todas baseadas na realidade). Essas vozes procedem dos antepassados e dos amigos mortos – que contam histórias, evocam lembranças e deixam antever suas expectativas quanto ao futuro do biografado. Escutamos também a algaravia dos pequenos netos, expressando em linguagem infantil a paixão que o avô nutre por eles. A flexibilidade da narrativa é ampliada por seis autorretratos através dos quais o próprio Nelson Sirotsky expõe sua visão de mundo e recupera – em estilo denso e persuasivo – situações-limites que viveu, tentando dissecá-las e compreendê-las por meio da escrita.
O impacto maior, no entanto, surge da matéria revelada. Com habilidade, a autora da biografia (não por acaso, romancista) retrata um mundo familiar onde avultam os vários estágios de vida desta figura proeminente que se alçou por sobre seu tempo e sua província, convertendo-se em referência nacional no campo da mídia. Ali está o menino que admira intensamente o pai, um self-made man capaz de trocar o serviço de alto-falantes da praça de Passo Fundo pela construção visionária de um império na área da comunicação. Ali está o jovem inventivo que aceita trabalhar na empresa paterna como auxiliar de contabilidade e, na primeira chance de comando, transforma a Rádio Gaúcha num sucesso de audiência. Ali está ele, ainda muito jovem, com a força avassaladora de seu carisma e de sua habilidade, estruturando a RBS em Santa Catarina – sob pressão de circunstâncias profundamente adversas – e colocando-a em pouco tempo como a preferida absoluta do público local.
Ali está ele, aos 38 anos, como sucessor do pai e do tio, dirigindo uma gigantesca rede de rádios, tevês e jornais, obrigado não somente a fazer opções decisivas no dia a dia, mas também preso ao compromisso de sedimentar a grandeza econômica do grupo e mantê-lo à tona no tumultuoso mar das paixões políticas que de há muito sobrecarregam a alma sul-rio-grandense. Ali está o homem maduro, poderoso e triunfante, que, no auge da capacidade executiva (2015), renuncia ao comando de um conglomerado de empresas que ele próprio expandira de maneira notável. Ali está, por fim, alguém que, aos 62 anos, escolhe reinventar o seu destino.
Toda essa matéria-prima vasta, vertiginosa e fascinante compõe O Oitavo Dia. Não se trata, contudo, de mero relato de uma trajetória individual, tampouco de simples afresco de um período de enormes transformações no país. A biografia não oculta o contexto histórico, nem o talento e a vontade férrea de alguém que se converteu em símbolo do arrojo empreendedor dos gaúchos. Porém, O Oitavo Dia é mais do que isso. Seja na narração dos fatos fundamentais da vida de Nelson Sirotsky, seja em seus tocantes autorretratos, irrompe no livro – sem subterfúgios – a confidência de um ser humano que experimentou múltiplas crises pessoais e empresariais (caso da privatização da telefonia no Brasil), que conheceu a terrível solidão do poder, que se debateu entre as exigências do mundo e as solicitações da interioridade, que teve ousadia e teve medo, e que nunca vacilou em olhar de frente a região de sombras, a qual todos divisamos em algum momento de nossa existência e nem sempre conseguimos enfrentar. O leitor deste livro não se decepcionará.
* Sergius Gonzaga é professor de Literatura e coordenador do Livro da Secretaria Municipal de Cultura