Por Ivonete Pinto
Crítica de cinema e professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), participou do júri da crítica do evento, formado pela Federação Internacional dos Críticos de Cinema (Fipresci)
O Festival Internacional de Cinema de San Sebastián – Donostiako Nazioarteko Zinemaldia, em basco –, é realizado desde 1953 na cidade litorânea do País Basco, na Espanha. Desde 1957 está na categoria A dos festivais internacionais, por promover em sua seleção oficial a estreia de filmes importantes para o circuito mundial. Mesmo tendo seu compromisso principal voltado à indústria, especialmente ao cinema latino-americano, é um evento conhecido por valorizar o cinema autoral.
Há muitas curiosidades se formos examinar os concorrentes nestes 66 anos de festival. Desde ter sido vitrine para os primeiros filmes de Roman Polanski e de Pedro Almodóvar, até ter dado o principal prêmio, a Concha de Oro, para A Face Oculta (1961), o único filme dirigido por Marlon Brando. Entre os convidados que desfilaram no tapete vermelho (sim, os bascos também cultivam as celebridades em literal tapete vermelho) há nomes como Alfred Hitchcock (a estreia de Um Corpo que Cai foi lá), Elia Kazan, Elizabeth Taylor e Francis Ford Coppola. Na edição deste ano, que terminou no último dia 29, a atenção dos fotógrafos esteve voltada para Bradley Cooper, que exibiu a première do seu remake de Nasce uma Estrela (filme que já entrou em cartaz no circuito comercial), Robert Pattinson, astro do filme High Life, de Claire Denis, e Judi Dench, homenageada nesta edição ao lado de Danny de Vito e Hirokazu Kore-eda com um prêmio honorário.
Nada disso teria maior sentido para a indústria não fosse o festival representar uma caixa de ressonância quanto às apostas que deverão concorrer ao Oscar. O próprio Kore-eda, cineasta japonês vencedor do Festival de Cannes, em maio, com Assunto de Família (que estreia em janeiro no Brasil), é o indicado do Japão para o Oscar de filme estrangeiro. Bradley Cooper, que já havia apresentado o filme que marca sua estreia na direção no Festival de Toronto, desponta como provável indicado ao maior prêmio da indústria norte-americana. Outro oscarizável é Beautiful Boy, traduzido como Querido Menino e com estreia no Brasil prevista para fevereiro. Dirigido por Felix Van Groeningen, esse filme é estrelado pelo ator sensação do momento, Timothée Chalamet. Ele protagoniza uma história baseada em fatos reais sobre um jovem que, ainda adolescente, enfia-se desesperadamente nas drogas e tem na dedicação de seu pai (Steve Carrell) uma possibilidade de sobrevivência. Chalamet, revelado por Me Chame pelo Seu Nome (2017), por seu desempenho visceral, é uma indicação quase certa ao Oscar.
Na contracorrente, dois prêmios para melhor filme, respectivamente o do júri oficial e o do júri da crítica, encaixam-se no viés "filme de autor" e possivelmente passarão ao largo de Hollywood: o espanhol Entre dos Aguas, de Isaki Lacuesta, e o francês High Life. O primeiro é um híbrido entre documentário e ficção que acompanha a rotina de marginalizados de origem cigana. High Life, ignorado pela seleção de Cannes, traz a extravagância da diretora Claire Denis, conhecida por produções realistas, enfrentando uma ficção científica e tendo como protagonista o crepuscular Robert Pattinson. Muito em função dele, o filme deve ter uma distribuição abrangente – a cargo da Disney.
Boa parte das principais atrações de San Sebastián estava nas mostras paralelas, não competitivas, com títulos já exibidos em outros festivais. E esse é um aspecto que esclarece o lugar de San Sebastián no cenário dos festivais A: trata-se de uma espécie de primo pobre de Cannes, Berlim e Veneza, a trinca dos principais eventos europeus, realizados antes no calendário anual e palco de lançamento dos filmes mais esperados da temporada. Essa condição inclusive foi tema de autodeboche na cerimônia de abertura do festival, que contou com estrelas como Ricardo Darín na plateia (o filme de abertura foi o açucarado argentino O Amor Menos Pensado, de Juan Vera, ainda sem data de estreia mas desde já de carreira promissora no Brasil). O humor ácido da cerimônia demonstrou como San Sebastián assume, rindo de si mesmo, a condição de ficar com os "restos" de Cannes, Berlim e Veneza.
Em debate, a questão Netflix
Para os frequentadores do festival, espanhóis vindos de várias partes do país, as sessões paralelas são banquete fino. Contando com 29 salas de cinema, incluindo cine-teatros históricos como o Victória Eugenia, as sessões são concorridíssimas. Até mesmo o mais recente filme do mexicano Carlos Reygadas, Nuestro Tiempo, com quase três horas de duração, teve plateia lotada – afinal, era preciso conferir o filme selecionado por Veneza. Mas a curiosidade maior ficou com Roma, de outro mexicano, Alfonso Cuarón. Roma foi o primeiro filme produzido por um canal de streaming, a Netflix, a vencer um dos grandes festivais de cinema do planeta, ficando com o Leão de Ouro em Veneza. Recusado em Cannes, foi abraçado pelo festival italiano, escancarando a divisão em que se encontram os festivais – o festival francês rechaça a competição com filmes produzidos por canais de streaming, exigindo que as produções sejam exibidas no circuito comercial do país pelo menos 36 meses antes de serem lançadas em plataformas online, regra que a Netflix não aceita. A considerar a força de Veneza, Roma não precisou do aval de Cannes.
O fato é que Roma, uma viagem ao México dos anos 1970 com uma reconstituição de época impressionante, é um filmaço. Mais do que isso, é um filme contemporâneo, de olho no passado com percepções do presente, pois coloca como protagonista uma empregada doméstica de origem indígena (Yalitza Aparicio). Vemos tudo pelo olhar dela, numa nítida subversão dos padrões narrativos do cinema clássico. Roma é o indicado do México ao Oscar e, como tem estreia nos cinemas dos EUA marcada para dezembro (mesma época em que deve ser disponibilizado na Netflix), pode inclusive ganhar outras indicações além de filme estrangeiro.
Enquanto Veneza foi criticado por ter uma só diretora competindo, San Sebastián tinha cinco, entre elas uma espanhola, Icíar Bollaín. Preocupado com as sensibilidades dos novos tempos, o festival assumiu um compromisso público de, a partir de 2019, ter uma comissão de seleção paritária entre homens e mulheres. Pegou bem. Juliette Binoche foi uma das que assinaram o documento como testemunha do compromisso.
O Brasil não teve filme selecionado para a seção oficial, mas subiu ao palco para receber um prêmio. Foi com Pedro Sotero, diretor de fotografia de Aquarius (2016) e Gabriel e a Montanha (2017), que ganhou a Concha da categoria por seu trabalho em Rojo, do argentino Benjamin Naishtat. O longa, que recria o ambiente sinistro dos anos 1970, é uma coprodução com o Brasil e será exibido no Festival do Rio em novembro. Trata-se de mais um daqueles filmes argentinos que agradam tanto ao público quanto à crítica pela competência e inventividade. Decidido a manter a memória dos horrores da ditadura militar, examina o envolvimento silencioso de uma cidadezinha pacata no momento em que nascia o ovo da serpente. Esse aspecto, da participação da "gente de bem" da sociedade nas atrocidades daquela ditadura, dá ao filme um motivo a mais para ser visto no Brasil.
Na página do jornal diário do festival, o governo brasileiro publicou um anúncio divulgando a participação do país, listando as exibições de sete filmes: as coproduções Rojo, Família Submergida, Sonho Florianópolis, Mateína e As Herdeiras (paraguaio que está em cartaz em Porto Alegre), além de Ferrugem (melhor filme em Gramado) e Los Silêncios (exibido na Quinzena dos Realizadores em Cannes). A peça também divulgava os projetos de longa-metragem Democracia, de Tata Amaral, e Diário de Viagem, de Paula Um Mi Kim – ambos foram apresentados no evento basco.
Cabe destacar que a promoção do cinema brasileiro em festivais internacionais, que inclui a participação em encontros de coprodução, é realizada pelo Cinema do Brasil, um programa de exportação envolvendo a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), a Agência Nacional de Cinema (Ancine), o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Ministério da Cultura (MinC). O esforço pode soar demasiado, mas, ao observarmos as divulgações da Argentina e Colômbia, por exemplo, vemos que ainda fazemos pouco.