O filme brasileiro mais comentado dos últimos tempos vai enfim entrar em cartaz. Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, estreia nesta quinta-feira na Capital já com uma trajetória de elogios, prêmios e polêmicas. O mais recente episódio desse movimentado percurso foi escrito na última sexta-feira, quando o longa abriu fora do concurso o 44º Festival de Cinema de Gramado. A exibição comprovou para o público do evento serrano o que a imprensa vem afirmando quase unanimemente desde que a produção passou na competição do Festival de Cannes: o novo trabalho do realizador de O som ao redor (2013) é uma obra de arte impressionante e perturbadora.
Desde que a delegação de Aquarius protestou em Cannes com cartazes contra o governo do presidente interino Michel Temer, a atenção sobre o filme extrapolou a questão cinematográfica para incluir também o debate político. A crítica à atitude do elenco e da equipe no festival francês, expressa nas redes sociais por um jornalista paulista que viria a se tornar integrante da comissão responsável por indicar o postulante brasileiro a uma vaga na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, desencadeou uma série de reações. Os diretores Gabriel Mascaro, de Boi neon, Anna Muylaert, de Mão só há uma, e Aly Muritiba, de Para minha amada morta, retiraram seus títulos da lista de indicações. Já o diretor e produtor Guilherme Fiúza Zenha e a atriz Ingra Lyberato renunciaram a seus lugares nessa comissão de nove membros ligados ao audiovisual.
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Por fim, Aquarius recebeu do Ministério da Justiça a classificação indicativa de 18 anos, sob a justificativa de que contém "situação sexual complexa". A rigorosa qualificação – que deve restringir o público, já que boa parte dos espectadores no Brasil é formada por adolescentes – é excessiva, uma vez que as cenas de sexo e nudez são breves e menos explícitas do que as de filmes recentes como Boi neon, por exemplo, classificado impróprio para menores de 16 anos. Para muitos, foi uma represália oficial pelo posicionamento político do realizador. O clima acirrado reverberou em Gramado: Marcelo Calero, ministro da Cultura, compareceu à sessão do filme e foi vaiado por parte de plateia, que o chamou de "ministro golpista" e "Calero pelego", entre outros xingamentos.
Para além das discussões, Aquarius impõe-se como mais um retrato contundente das contradições sociais do país pintado por Kleber Mendonça Filho. Se em O som ao redor o painel da vida urbana brasileira a partir da classe média de Recife era apresentado sob o ponto de vista de vários personagens, em seu novo drama o diretor e roteirista coloca figuras e situações orbitando em torno de uma protagonista de presença magnética – magistralmente interpretada por Sonia Braga. A atriz de 66 anos encarna Clara, que vive em um apartamento na frente da orla na capital pernambucana. Viúva que sobreviveu a um câncer de mama, a jornalista especializada em música mora sozinha no lar onde criou os três filhos. Interessados em construir um novo prédio no local, os donos de uma construtora compraram todos os apartamentos do edifício, menos o de Clara – que se recusa a vender seu imóvel. Ela passa então a sofrer todo tipo de assédio e ameaça para mudar de ideia e aceitar o negócio – uma pressão que vem tanto dos empreiteiros como até da filha (Maeve Jinkings).
Aquarius coloca em pauta temas recorrentes na filmografia do cineasta pernambucano, como o crescimento urbano desordenado nas grandes cidades do país, a clivagem de classes no Brasil, a maneira singular e contraditória como patrões e empregados domésticos convivem aqui, a tendência ao apagamento da memória individual e coletiva. Da mesma forma que em O som ao redor, o filme é dividido em três partes, denominadas como capítulos de um livro, que vão se desenvolvendo dramaticamente em crescente tensão até o desfecho catártico. Além da fotografia precisa de Pedro Sotero e Fabricio Tadeu e da montagem fluente de Eduardo Serrano, merecem destaque também em Aquarius a expressiva direção de arte – incluindo até uma evocativa reconstituição de época – e a colorida trilha sonora, que reúne de Gilberto Gil a Taiguara, passando por Villa-Lobos, Reginaldo Rossi, o grupo pernambucano Ave Sangria e a banda inglesa Queen.
À frente de um elenco em que se sobressaem ainda Irandhir Santos como um salva-vidas e, especialmente, Humberto Carrão no papel do jovem vilão da especulação, Sonia Braga empresta vigor e paixão a Clara – uma mulher que enfrenta o machismo, a ganância, o preconceito e o envelhecimento, uma avó que dá vazão a seu desejo sexual, uma cultivadora do passado aberta ao novo. Dona de uma estampa que preenche e imanta a tela, a atriz corporifica em Aquarius o que o diretor Carlos Diegues disse em um vídeo exibido quando o Troféu Oscarito foi entregue à diva na sexta-feira: "A câmera ama o rosto e o corpo de Sonia Braga".