A diretora gaúcha Flavia Castro, que estreou no cinema com Diário de uma Busca, premiado documentário sobre a misteriosa morte de seu pai em Porto Alegre, já no fim da ditadura militar no Brasil, volta a abordar as consequências do regime, desta vez em um filme de ficção.
Deslembro, seu segundo longa, que estreia nesta quinta-feira nas salas Guion Center 3 e Espaço Itaú 8, é a história de formação de uma garota descobrindo não apenas as mudanças da adolescência, mas a própria memória da infância. O filme se constrói em torno de Joana (a estreante Jeanne Boudier), adolescente que mora com sua família em Paris. A mãe (interpretada por Sara Antunes) vive com um novo companheiro, um exilado chileno, Luís. Joana tem dois irmãos: Paco (Arthur Raynaud), filho de Luís de um casamento anterior, e o filho mais novo do casal, o pequeno Leon (Hugo Abranches).
É bastante simbólico que já na primeira cena Joana seja vista rasgando e retalhando seu passaporte brasileiro e o fazendo descer privada abaixo. Tendo vivido boa parte de sua vida em Paris e formado lá um círculo de amigos e de convivência, a garota está longe de compartilhar com a mãe a alegria pela volta ao Brasil após a anistia de 1979.
A destruição do passaporte é uma metáfora para a destruição e mais tarde reconstituição da própria identidade que Joana terá de enfrentar quando a família retorna ao Rio de Janeiro. O pai biológico de Joana (vivido por Jesuíta Barbosa em flashbacks difusos em que é enquadrado apenas em silhueta ou em detalhes como olhos e mãos) é um dos desaparecidos da ditadura, e a total compreensão do que isso significa vai atingir a jovem à medida que ela retoma contato com a avó (Eliane Giardini) e com elementos até então desconhecidos da vida dos pais.
A descoberta da adolescência com seu vulcão de sensações díspares, une-se à descoberta do próprio passado, com a temporada no Rio destravando flashes de memórias que a jovem testemunhou na infância e que foram reprimidas com o tempo.
– Foi a chance de tratar da memória de maneira lúdica: como a gente lembra, como mostrar isso cinematograficamente? Eram coisas que eu queria desenvolver – conta a diretora Flávia Castro.
ENTREVISTA: FLÁVIA CASTRO
"Há uma negação da História"
Flávia foi premiada em Gramado, no Rio, em Biarritz e em Punta del Este com seu primeiro filme. Deslembro começa agora sua trajetória em circuito comercial. Leia a entrevista que a diretora concedeu a ZH:
Como foi a transição de passar de um primeiro filme documental para esta história de ficção, que, no entanto, compartilha a temática com o primeiro e aborda mais ou menos a mesma época?
Eu acho que o Deslembro nasce do Diário de uma Busca. Foi muito durante a montagem do Diário que eu comecei a pensar em fazer uma ficção para tratar de mais algumas coisas que já me interessavam naquele momento, como nossa a relação com a memória, indo mais fundo nessa questão da memória, não de uma adolescente, mas da minha, com algumas questões que se parecem com as minhas, outras não.
A ficção também não surge como uma tentativa de ter mais liberdade para trabalhar com os elementos do filme e da história?
Mais liberdade para tratar da memória de uma maneira lúdica: como a gente lembra, como eu mostro isso cinematograficamente? Eu queria desenvolver.
Qual foi a dificuldade da seleção de elenco, especialmente da protagonista e de seus irmãos? A personagem principal, por exemplo, é uma adolescente interpretando em três idiomas. Como você a encontrou?
Eu precisava de jovens bilíngues, de uma menina que fosse completamente bilíngue, e procurei nas escolas francesas do Brasil, São Paulo, Brasília e Rio. E tive a sorte de encontrar a Jeanne Boudier no Rio, a cidade em que eu moro, o que facilitou fazermos um trabalho com ela e os meninos um bom tempo antes do filme. Isso foi muito importante para que eles se conhecessem, ensaiassem juntos, conhecerem a Sara Antunes, que interpreta a mãe deles. Ela mora em São Paulo, mas veio algumas vezes para esses encontros.
Em 2008, Zuenir Ventura lançou um segundo volume do seu clássico 1968, desta vez incluindo depoimentos de personagens que eram filhos dos protagonistas do primeiro livro, visões do tema que ele mesmo admite que não passaram por sua cabeça quando escreveu a primeira obra. É interessante que comecem a circular agora essas visões dos filhos dos militantes da época. Os seus dois filmes são sobre isso. É um projeto consciente?
É um projeto consciente no sentido de que a gente precisa fazer um trabalho de memória que não foi feito neste país. A gente não puniu os torturadores, a gente tem uma lei da anistia que tem interpretação absurda, então acho que, além de ser a história de uma menina e as questões que estão no filme são questões da relação dela com a memória dos desaparecidos políticos, tem por trás disso a questão da memória de um país, e o trabalho necessário de lembrar dessas histórias.
É como se o filme fosse um romance de formação em que ela não apenas descobre quem será como adulta, mas o próprio país à sua volta, do qual tem pouca lembrança?
Acho que sim. Ao mesmo tempo, esse momento da adolescência já é de transformação, e ainda por cima tem a volta para o Brasil, e aí sim é um elemento completamente autobiográfico meu. O que muda é que eu não tive essa busca de um pai desaparecido político que ela tem. Ela volta para o Brasil, que para ela é um país novo, embora tenha nascido aqui, e passa pela volta dessa memória de ter vivido aqui, e um desejo de entender de onde veio. E isso passa pela personagem da vó, vivida pela Eliane Giardini.
Como você vê a chegada desse filme ao circuito neste momento em que há uma polarização do país e o momento é completamente diverso de quando você lançou Diário de uma Busca?
Quando o Diário de uma Busca saiu e eu comecei a viajar com ele, lá no final de 2010, todo mundo na América Latina, Argentina, Uruguai, Chile me perguntava: "Quando vocês vão fazer uma comissão da verdade?" Isso foi muito marcante para mim, a falta de uma política de memória institucionalizada como os outros países fizeram. E acho que naquele momento ainda estava por fazer. E a gente fez, ainda que tardiamente, e não tão forte nem tem aprofundado como deveria ter sido. E o Deslembro chega agora em um momento em que há uma negação da história que vem muito forte desde 2014, quando começou um movimento muito potente pró-ditadura. Em 2011, a gente não podia imaginar que estaria agora neste momento. E quando você tem um presidente que faz isso, é gravíssimo. O presidente que dedicou o impeachment da Dilma ao Ustra, que é um dos poucos torturadores julgados e condenados, é muito grave. Então, para responder: acho que o filme, como qualquer filme, é um filme de hoje. Ele ocupa um espaço de contar nossa história, não vamos esquecer, vamos trabalhar melhor a memória, vamos resistir à negação. Porque o que se nega são fatos, o que é muito grave. Não é uma questão de opinião, são fatos estabelecidos. Não é ser de direita ou de esquerda, é ser outra coisa.
E como você vê a ascensão da extrema-direita brasileira com a exaltação do período militar como consequência?
Acho terrível. Acho assustador, acho deprimente. Penso que é muito difícil fazer uma análise clara do que está acontecendo. Acho que tem um fenômeno mundial das direitas terem encontrado uma nova força internacionalmente, mas de uma forma muito particular. Tem a questão do presidente, mas tem uma corrente muito forte de pessoas acreditando em coisas que não existiram. Quando meu filme passou no Festival do Rio, foi feita uma matéria no Globo, e os comentários que tinham nas páginas eram todos desse tipo: "Minha vó disse que a ditadura era ótima". "Por que não mataram essas crianças todas junto com os comunistas?" "Por que esses comunistas foram ter filhos?" E tudo em função do título da matéria, que não tinha nada de mais, falava da questão de o filme ser da perspectiva das crianças, não era uma bandeira. Então é realmente assustador.
Há uma mitologia de que trabalhar com crianças é um dos grandes desafios para os diretores, porque ao mesmo tempo em que elas embarcam muito fácil no faz de conta e na imaginação elas podem se cansar facilmente. Como foi seu trabalho com o elenco jovem? Houve alguma preparação especial?
Eu vi muito filme com criança, li também muita teoria, tem várias correntes sobre como cada diretor lida com um elenco infantil. Algumas dessas formas eu achava desrespeitosas com as crianças: enganá-las, fingir, coisa não muito legais. Eu fiz de forma muito direta, pensando na relação que eu estabeleci com meus filhos, uma coisa de falar a verdade, olhar no olho, tratar como pessoa. É uma pessoa, é pequena, você protege de algumas coisas, mas é uma pessoa com quem estabelecer um diálogo. Então era faz de conta sim, era brincadeira sim. Em nenhum momento eu tentei embaralhar ou misturar as instâncias, eles sempre sabiam que era um filme. E recuperar o lado da atuação como uma coisa lúdica foi muito interessante pra mim. Isto dito, eu não deixava eles muito livres. Eu não ficava muito em cima. Havia o texto, havia a narrativa a ser contada, mas eu ficava muito aberta ao que eles iam sugerir.
Algo dessa improvisação entrou no filme finalizado?
Havia vezes em que eles estavam ali, entre eles, brincando, e a gente começava a filmar. E muitas coisas desses momentos entraram no filme. Por exemplo, houve um momento em que eles começaram a fazer uma brincadeira e a puxar o papel de parede do apartamento. Eu pensei: "Opa isso é bom. Vamos lá". Pedi para eles esperarem um pouquinho, a gente montou a câmera e pedi para eles continuarem. E aquilo era uma brincadeira que eles próprios inventaram. E a Jeanne dá muito o tom da atuação do filme de modo geral. E ela com eles dava a liga para o filme. Principalmente com o Hugo, o pequenininho, que intepreta o irmão menor, Leon. Ela que ensaiva com ele. A gente teve trabalho de ator com uma preparadora de elenco de Pernambuco chamada Amanda Gabriel. Ela fez um trabalho com a Jeanne de ir na casa, discutir o roteiro, entender os medos dela, as dúvidas.