Por Vera Chaves Barcellos
Artista visual, curadora de “Iberê Camargo: Desenhos”
Após um convite de Emilio Kalil, atual diretor da Fundação Iberê Camargo, deparei com a duplamente difícil tarefa de escrever sobre a obra de Iberê e realizar uma curadoria de uma exposição de sua obra na instituição.
Desde 2008, podemos contabilizar 21 exposições dedicadas a diversos aspectos da produção do artista, com ênfase na sua obra pictórica e com magníficos registros em catálogos ilustrados, com textos de competentes críticos, teóricos e historiadores de arte, em sua maioria ligados a instituições de ensino e à academia, todos tendo como meio principal de expressão a palavra. São especialistas em arte e no verbo Eu, ao contrário, não estou ligada à academia nem possuo a erudição desses autores. Só posso dar meu depoimento e justificar minhas escolhas com meu olhar e vivência como artista.
Sobre a exposição, tive a consciência de que a maioria das realizadas até agora na Fundação se concentrou principalmente na pintura de Iberê Camargo, sem dúvida a sua maior contribuição para a arte brasileira, seguida de perto por sua extensa produção de gravura, especialmente a gravura em metal, a qual mereceu um catálogo raisonné, de Mônica Zielinsky. Como vários outros, pensei em organizar uma mostra de suas pinturas, já que esta seria sua expressão máxima e a mais cultuada, mas deparei com o imenso acervo de seus desenhos e acabei me decidindo por estes.
O processo do desenho é não só muito diferente do processo da pintura, mas talvez até oposto. A possibilidade constante de destruir e refazer, que existe na pintura, não existe no desenho. Este é direto e inapagável: todo traço de dúvida ou correção fica registrado. O que se faz em um desenho não se desfaz. Tudo no desenho é definitivo. Assim, todas as possíveis hesitações ou retrocessos existentes, apagados no ato de pintar de Iberê, estão desvelados em seus desenhos. Por isso, estes são mais reveladores de seu processo.
Por outro lado, ao analisar esses desenhos, constatei que neles poderia haver uma maior revelação de quem fora Iberê Camargo, em todos os variados momentos de seu inquieto e conturbado temperamento. Seria possível um processo analítico de sua personalidade e psiquismo por meio unicamente dos desenhos, desvendando seus valores e suas certezas, suas obsessões, seus traumas, seus medos e fantasmas.
Dentro do conjunto de mais de 3,7 mil desenhos pertencentes à coleção da instituição e tombados como tal, existe um rico universo que podemos organizar por temas: há o corpo humano, em sua maioria o corpo feminino, mas também alguns masculinos, estudos de aprendizagem, no início da carreira do artista e que retornam a partir do começo dos anos 1980 até o final de sua vida. Dentro desses, estão, em grande número, os nus, anatômicos e analíticos, muitos eróticos, às vezes beirando o pornográfico, ou os desenhos finais de figuras trágicas e decadentes; também inúmeros estudos de manequins, vestidos ou despidos, corpos de gestos mecânicos e artificiais além dos nus de sua fase final como os ciclistas, figuras patéticas carentes de qualquer ilusão e já indiferentes ao mundo em redor, que passam sem destino certo, seres que se despedem da vida; e as idiotas, sombras sem rumo e sem razão.
Há também os retratos, a começar pelos autorretratos que atravessam a vida do artista desde o jovem dotado de beleza e elegância até os da velhice, no dizer do próprio artista, onde ele se torna uma caricatura; a seguir, muitos retratos de homens e mulheres, desde a fase de aprendizado, desenhos acadêmicos, aos retratos expressionistas da década de 1980 e também os inúmeros retratos de diversas épocas de sua mulher, Maria Camargo.
As paisagens, temas constantes nos anos 1940 e 1950; algumas, ainda produzidas pelo jovem artista em seus inícios, em técnica absorvida de estudos em reproduções de mestres renascentistas ou europeus; depois, as paisagens apenas esboçadas, de poucos traços, muitas vezes estudos para futuras pinturas, incluindo anotações de cores e dimensões, ou as de traço mais solto que denotam a marca do que viria ser o artista e sua produção futura com predominância do gesto. A paisagem desaparece quase totalmente de sua produção durante longo período, reaparecendo como cenário de fundo das figuras fantasmagóricas de sua fase final.
Espero que a exposição e a escolha realizada, após muitas visitas ao acervo da Fundação, possam trazer ao público uma boa informação a respeito da produção dos desenhos de Iberê Camargo, e que a visita a esta mostra seja uma imersão no processo criador do artista e, ao mesmo tempo, uma revelação do ser humano que foi Iberê Camargo.
Iberê Camargo: Desenhos
São 163 trabalhos do artista, escolhidos pela curadora Vera Caves Barcellos em um universo de mais de 3,7 mil disponíveis no acerto de Iberê. Visitação até 15 de outubro, de quinta a domingo, das 14h às 18h. Às quintas-feiras o ingresso é gratuito; nos outros dias, custa entre R$ 10 e R$ 20. Na Fundação Iberê Camargo (Avenida Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre.