Quando começou a espalhar aos milhares a figura de um indiozinho pelas ruas de Porto Alegre, no início dos anos 2000, Xadalu Tupã Jekupé queria mandar um recado: "Por mais que vocês finjam não nos ver, nós estamos aqui!". Depois, quando placas de sinalização com a frase "Atenção: Área Indígena" também começaram a aparecer nos muros da Capital, a mensagem ficou ainda mais direta: "Por mais que vocês tentem apagar a história, Porto Alegre — e o país inteiro — é território indígena".
E lá se foram quase 20 anos desde que o artista, cujo nome civil é Dione Martins, passou a virar madrugadas com um balde de cola em uma mão e muitos recados a serem fixados nas paredes na outra. Desde então, levou o trabalho iniciado com o status de arte urbana para galerias de diferentes Estados brasileiros e desembarca neste sábado (14) na Fundação Iberê Camargo, onde estreia a mostra individual Antes que se Apague: Territórios Flutuantes.
A curadoria é assinada por Cauê Alves, curador-chefe do MAM São Paulo, que no catálogo de apresentação da exposição define o trabalho feito ao longo dos anos por Xadalu como uma "reconquista". "Não como a conquista colonial, que explora e destrói a terra (...), mas de modo singelo, chamando atenção para quem sempre esteve ali, sentado, resistindo, mas que foi praticamente apagado", escreve.
E como o título já entrega, o que não mudou nestas duas décadas foi o objetivo das obras assinadas pelo artista — cada vez mais complexas e tecnicamente diversificadas se comparadas ao simpático indiozinho de olhos arregalados que iniciou tudo isso. Xadalu almeja, por meio de sua arte, eternizar culturas e tradições indígenas que vêm sendo historicamente apagadas — por isso "antes que se apague".
— Era algo muito verdadeiro quando comecei e continua sendo algo muito verdadeiro agora — avalia o artista.
Sua verdade artística é expressa pelas 19 obras que compõem a mostra na Fundação Iberê, das quais 14 foram concebidas especialmente para a exposição, frutos de um trabalho que o artista considera coletivo. Isso porque, apesar de ser ele o executor, tudo o que transforma em arte vem dos aprendizados e trocas que tem com a avó, remanescente do antigo território indígena Ararenguá, em Alegrete, e com sábios de diferentes aldeias.
Foi, por exemplo, a partir de causos fantásticos ouvidos em rodas à beira da fogueira que criou uma série de pinturas que reproduzem lendas Guarani — versões para essas narrativas ancestrais contadas de geração em geração entre diferentes etnias, feitas por ele em tempo, antes que se apaguem. Também de saberes compartilhados veio a instalação Apyká, obra que se destaca na mostra, na qual Xadalu mistura diversas técnicas para representar a criação do mundo conforme a tradição dos povos originários.
— Essas lendas e visões cosmológicas fazem parte da literatura oral indígena, de maneira que poucas são transcritas. Acho importante transcrevê-las, mas transcrevê-las através da arte. Porque transcrever através da palavra vai contra a própria ideia da oralidade — explica.
Atualidade
Tal transcrição material só é necessária, aponta o artista, porque pouca coisa mudou desde que os primeiros indígenas foram exterminados por colonizadores portugueses em solo brasileiro, à época do descobrimento. Quinhentos anos depois, indígenas continuam a ser exterminados aqui.
Como exemplo, ele cita as comunidades Yanomami que vêm sendo dizimadas em Roraima, vítimas de ataques ligados ao avanço do garimpo ilegal na região — algo que define como "chacina anunciada". É uma atualidade triste, inconveniente, que Xadalu não desejava ver estampada tão claramente em suas obras.
— O governo faz vista grossa, os garimpeiros avançam, e não se faz nada para conter. Se o que está acontecendo com os Yanomami acontecesse em um bairro nobre de qualquer cidade do país, não duraria um dia — compara.
Apesar do tom pessimista trazido pelo "antes que se apague" que intitula a mostra — que ele reconhece como "algo melancólico", mas "para ter final feliz" —, Xadalu acredita que uma nova realidade ainda pode ser construída. Para ele, qualquer mudança no que diz respeito à questão indígena no Brasil passa pela educação. E educar é também o que deseja fazer com sua arte.
O artista defende a aplicação correta da Lei 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do estudo da história indígena e afro-brasileira nos ensinos Fundamental e Médio, e questiona o modo como indígenas vêm sendo representados ao longo dos anos.
— Dentro da sociedade, as pessoas não conseguem entender a cultura indígena porque isso não é aplicado dentro das escolas. É algo explicado só como um fetiche: a oca, o andar pelado... — critica, mas sem deixar de ser otimista: — Antes que se apague, há tempo para a gente rever os nossos paradigmas da sociedade.
Antes que se Apague: Territórios Flutuantes
- Exposição de Xadalu Tupã Jekupé com curadoria de Cauê Alves.
- Abertura neste sábado (14), às 14h, na Fundação Iberê Camargo (Avenida Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre.
- No sábado de abertura (14), haverá visita guiada por Xadalu e Cauê Alves às 14h30min e sessão seguida de bate-papo do episódio de Xadalu na websérie Misturados, às 16h30min, com Xadalu, Alves e os diretores do documentário, Luiz Alberto Cassol e Richard Serraria.
- Visitação de quinta a domingo, das 14h às 18h (última entrada). Até 31 de julho.
- Às quintas-feiras, a entrada é gratuita; de sexta a domingo, os ingressos custam entre R$ 10 e R$ 30, com agendamento pelo site Sympla.