Ele já virou cinco madrugadas seguidas fazendo demarcações em Porto Alegre. Com um balde de cola quente em uma mão e um rolo de cartazes debaixo do braço, grava em muros e paredes o protesto disfarçado de arte urbana: “Atenção: Área Indígena”.
O autor é Dione Martins da Luz, nome que está no seu RG, Tupã Jukupé, segundo batismo feito por um centenário cacique guarani, ou Xadalu, como passou a ser chamado nas ruas da Capital. Foi como apelidou sua primeira obra, o rosto de um indiozinho de olhos grandes colado aos milhares pela cidade, e acabou se apropriando do nome.
Ele nasceu em 1985 em Alegrete, na Fronteira Oeste, descendente de indígenas. Aos nove anos, foi trazido à Capital pela mãe, faxineira, com uma irmã bebê de colo, em busca de uma nova vida. Mas acabaram na Vila do Funil, na Zona Sul, catando latinhas no lixo e tirando o sustento da reciclagem.
Xadalu teve o primeiro contato com street art por meio de um colega de escola, Celo Pax — que é, hoje, também um dos expoentes da arte urbana na cidade. Como não sabia mexer no computador, foi Celo Pax quem o ajudou a fazer o desenho do indiozinho para “repovoar uma cultura que estava sendo extinta”. Por mais fofo e parecido com um personagem de desenho animado, ele marca o começo do trabalho de resistência do artista, em 2003.
— A resistência, o tempo e a memória são os elementos guaranis ligados ao chão. É a mais pura arte urbana e resistência no território sagrado, porque Porto Alegre foi construída em cima de uma aldeia — diz.
Além de serigrafia, Xadalu passou a usar também a pintura, a fotografia e objetos para abordar o tensionamento entre a cultura indígena e ocidental nas cidades. E acabou levando seu trabalho para dentro das galerias de arte. A entrevista a GZH foi feita por videochamada porque está fazendo residência artística na França, após vencer o Prêmio Aliança Francesa com a obra Invasão Colonial: Meu Corpo Nosso Território. Colocando coletes à prova de bala em indígenas de várias idades, a obra retrata as invasões de milícias armadas em terras Guaranis Mbya.
Na volta ao Brasil, Xadalu vai abrir uma exposição no Instituto Inclusartiz, no Rio de Janeiro, vem a Porto Alegre para outra mostra, na Fundação Iberê Camargo, e retorna ao território fluminense para uma mostra no Museu Nacional de Belas Artes.
Ele acredita que sua obra teve um “salto quântico”depois que conheceu pessoalmente várias comunidades indígenas do país — o diálogo e a integração com a comunidade Guarani Mbyá permitiram ao artista o resgate e reconhecimento da própria ancestralidade. E ele faz questão de trazer os irmãos de diferentes aldeias para dentro do museu, trabalhando também para que livros de arte e vídeos tenham tradução para guarani.
— Eu acredito que a arte tem que servir pra contar a história de um povo em algum período. Para que, daqui a 50 anos, as pessoas olhem para trás, nos museus, nos arquivos, e digam, por exemplo: existiu um movimento de arte contemporânea indígena em Porto Alegre, iniciado por Xadalu junto com a comunidade — argumenta.
Para o curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, "Xadalu não fica à espera por mudanças na sociedade, mas busca agenciar sua potência para agir na escala individual". Para ele, "a arte de Xadalu não vai mudar o mundo, mas pode alterar nosso olhar sobre as coisas".
Com essa nova etapa dentro de espaços institucionais, o artista admite que acabou se afastando um pouco dos artistas de rua, mas continua fazendo colagens, não autorizadas pelos proprietários ou prefeitura, pelas ruas da Capital:
— Eu era uma pessoa que sobrevivia da rua, do lixo. Esse DNA marginal vai continuar dentro de mim. Porque eu faço parte disso.