A primeira espécie de monstrengo nasceu ali em 2011 ou 2012. Desde então, a criatura arredondada e cheia de dentes foi evoluindo, ganhando contorno, tons próprios e identidade à medida povoava muros insossos da Capital.
Seu criador é Marcelo Saraiva, 35 anos, que assina os grafites como Celo Pax. O porto-alegrense tem todo um cuidado para não cravar o que são os seres que ele pinta com tinta spray porque acredita que “a arte é esse universo livre onde eu posso ser o que eu quiser e tu podes fazer a leitura que tu quiseres”.
Mas supõe que a paixão pelo pôr do sol, compartilhada com os outros porto-alegrenses, acabou influenciando na sua paleta de cores quentes. E que a bocona escancarada do monstrengo é uma forma de protesto.
— Uma vez eu vi um pixo que dizia: “A rua tem voz”. Quando comecei a rabiscar, isso inconscientemente me veio: vou fazer um personagem com um bocão. E não existe a possibilidade de ele fechar a boca. Ele quer falar alguma coisa — diz Celo Pax, com a máscara de pintura pendurada no peito, tênis e bermuda, do lado da mochila cheia de tubos de spray.
Seu talento já era perceptível quando era criança. Na Escola Três de Outubro, na Zona Sul, não dava bola para educação física, não tinha nenhuma vontade de ser jogador de futebol.
— Eu era o esquisitão que gostava da aula de artes.
Foi convidado para pintar o muro do colégio no último ano, algo “bem tosco”, com o nome da escola e personagens que copiou de quadrinhos de jornal. Mas já foi um incentivo e motivo de orgulho.
Fez o Ensino Médio no Colégio Julio de Castilhos, onde pôde pintar telas em um ateliê de verdade. Estava bem empolgado para continuar estudando arte depois da escola, mas, por vir de família pobre, precisou trabalhar. Virou office-boy.
Então Celo Pax começou a grafitar, e isso agora já faz uns 20 anos. Naquela época não se sabia praticamente nada da técnica em Porto Alegre. Uma professora que assinava a Veja lhe entregou a cópia de uma página da revista com foto de um mural gigante pintado em São Paulo, e essa foi uma de suas inspirações.
— Em 2001, a internet não era popular, ninguém sabia o que era a técnica. Mas eu gosto de ter experimentado esse grafite sem muita informação — recorda.
Celo Pax acha genial o alcance da arte na rua, que abrange todas as classes sociais e faixas de idade, um público que não consegue nem mensurar. Tem quem já tenha lhe escrito que “não é obrigado a olhar essas coisas na rua”, mas também já recebeu feedbacks fofos, como de uma mãe que levava uma escova dental velha na bolsa e fingia escovar os dentes das criaturas grafitadas para educar a filha que brigava com a higiene bucal.
No domingo (31), enquanto repintava um muro na Rua Sarmento Leite, na Cidade Baixa, foi interrompido uma série de vezes para receber elogios ou responder a perguntas. Durante a entrevista a GZH, na reta final do grafite que lhe tirou umas cinco horas e R$ 800 em tinta, uma senhora falou em voz alta que achou linda a intervenção, sem parar sua caminhada.
— Porto Alegre tem que se abrir mais. Para tudo. Tá faltando muita coisa aqui, inclusive arte — disse a manicure Rita Maria Oliveira Yoshida.
Celo Pax dá razão a ela. Acha Porto Alegre uma cidade bem difícil para arte em geral, ainda mais a de rua. Ele se sustenta hoje disso, paga as contas, ajuda a mãe, por meio de painéis encomendados por moradores e empresas — o Céu Bar+Arte, na Rua Lima e Silva, foi um dos últimos que grafitou. Mas tem vivido uma relação difícil com as autoridades e legislação na cidade — o que explica porque a maior parte das suas últimas obras foram feitas em São Paulo.
Conta que já foi abordado pela Guarda Municipal com arma apontada na cabeça, que já precisou deitar no chão. Já teve também que responder na Justiça por seus grafites porque não conseguiu comprovar na hora que era uma obra autorizada. E já teve os equipamentos confiscados.
O artista acha necessário que haja um diálogo maior entre as autoridades e quem faz arte na rua. Cita uma praça em Barcelona (Espanha), cercada por muros dedicados ao grafite, e o próprio Beco do Batman, travessa toda grafitada na Vila Madalena que virou um dos principais pontos turísticos de São Paulo.
— O Beco está sempre atulhado de turista, gastando uma grana com obra de arte nas galerias da volta. É óbvio que arte de rua tem esse potencial, só falta enxergar — ressalta.
Arte x pichação, no raciocínio da Guarda
O comandante da Guarda Municipal de Porto Alegre, Marcelo Nascimento, afirma que "o que difere grafite de pichação não é a arte ou beleza, mas a sua autorização":
— Caso o artista efetue alguma intervenção em local proibido ou não autorizado, devemos efetuar a fiscalização.
O comandante explica que é pedida a autorização do proprietário ou poder público e, caso o artista não apresente, é autuado e conduzido à delegacia para efetuar a ocorrência policial. Ele responderá, segundo o comandante, ao artigo 65 da Lei 9605/98, que determina: "Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa".
Nascimento afirma ainda que a fiscalização feita pela Guarda obedece às técnicas policiais de abordagem e que qualquer abuso pode ser denunciado à ouvidoria e à corregedoria.
GZH perguntou à assessoria da prefeitura de Porto Alegre se há projetos para incentivar o grafite na cidade, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.