Por Paulo Herkenhoff
Curador, pesquisador e crítico de arte
O ano de 2022 se inicia uma surpresa vinda de Antônio Prado para Porto Alegre: a mostra da coleção Nadia e Paulo Sartori abrigada desde o dia 22 no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs).
A Coleção Sartori impressiona por muitos aspectos, que a tornam única. Em menos de 10 anos, o processo já resultou em mais de 400 obras, das quais 260 estão expostas no Margs.
– A construção da nossa coleção inicia de forma acanhada, mas, desde a primeira obra, carregada de muita emoção – revela Paulo Sartori sobre seu “sonho utópico”.
Com pesquisa, argúcia, discernimento e com um plano bem desenhado para o conjunto, Sartori prova que não são necessário recursos altíssimos para construir uma coleção culturalmente significativa. Bastam foco e determinação. Evidentemente os Sartori têm qualidades pessoais que conferem à coleção o perfil de um todo orgânico de relações entre grupos, períodos, estilos, artistas e obras. Há coleções que valem pelo conjunto reunido, pelas raridades, descobertas e artistas “fora da curva” do que está reconhecido.
A paixão pela arte, a coragem de correr riscos, a abertura para as novas linguagens, a curiosidade pelo desconhecido, a capacidade de tecer relações predispõem um acervo ao sucesso por sua singularidade. Afinal, colecionar não é amontoar coisas que parecem boa arte, mas urdir uma teia de nexos simbólicos. Alguns colecionadores se tornam seus próprios mestres, como no caso de Paulo Sartori, pois ensinam a si próprios que as primeiras paixões na arte nem sempre levam às melhores escolhas. Mas elas têm uma função de ligar “o motor de um processo sem volta”, como diz Paulo Sartori. Mais que critérios empíricos, Sartori passou a desenvolver princípios críticos e historiográficos, conceituais e a se aconselhar com vozes mais experientes para colecionar.
Os Sartori fizeram um movimento em duas direções na geografia da coleção: concentrar um foco na arte do Rio Grande do Sul a partir dos anos 1980 e ampliar o diapasão para a arte brasileira e, em seguida, para a sul-americana. Sem dúvida que o excelente núcleo gaúcho é a joia da coleção que vem de Antônio Prado. Qualquer bom estudioso da arte que visite o Rio Grande esperaria ali ver o melhor da arte local. Para os gaúchos, é elevar o apreço pela cultura do Estado. Não há arte brasileira sem os gaúchos. No entanto, o diálogo entre arte gaúcha e a do restante do Brasil só faz ampliar os horizontes.
A complexidade dos núcleos conceituais na mostra visa a levar os visitantes a fazerem descobertas a cada movimentos pelas galerias. Alguns exemplos de tais núcleos arte e história do Brasil da criação do mundo indígena a questões do século 21; obras de estranhamento entre sombras e opacidade numa das Salas Negras do Margs, retratos e autorretratos, a pop arte gaúcha com oito artistas; mitologia do povo guarani; a Geração 80 no Brasil e no Rio Grande do Sul, história da arte narrada pela própria arte; arte e física; o Brasil baiano. Digno de nota é um trio de “peleteiros” gaúchos com o Pedro Weingärtner de Vendedor de Pele (1903), a Karin Lambrecht de Tote Hase Weinen Nicht (“Coelho morto não chora”, 1990, pintura sobre tela e pele de coelho), que remete ao dramático no barroco e ao Joseph Beuys de Como Explicar Desenhos a uma Lebre Morta (1965), e a Lia Menna Barreto de Cortado (1990), o simulacro de uma pele de animal estrebuchado em tecido e pelúcia. O conjunto aborda a relação entre arte, vida e morte – dimensões cruciais da existência humana.
Todas os núcleos conceituais da exposição estão acompanhados por textos de parede para provocar a curiosidade e aprofundar o envolvimento dos visitantes com o conjunto. Isso faz da mostra Sartori um espaço generoso de recepção daqueles que pouco conhecem ou quere se envolver mais com a arte contemporânea.
– Há algum tempo já sentíamos isso, mas só agora é que temos a certeza de que o ato de colecionar é muito mais prazeroso se compartilhado – arremata Paulo Sartori.
A exposição
Coleção Sartori – A Arte Contemporânea Habita Antônio Prado reúne mais de 250 obras de mais de cem artistas apresentadas com a curadoria de Paulo Herkenhoff. Nas salas e galerias do primeiro andar do Margs (Praça da Alfândega, s/nº, em Porto Alegre). Visitação de terça-feira a domingo, das 10h às 19h (último acesso 18h30min), até 1º de maio. Entrada gratuita