Por Nicolas Beidacki
Curador, produtor, artista visual, integrante do Conselho de Cultura do Rio Grande do Sul
No concreto cinza de uma capital do sul do país, o artista aprende a andar submerso. Deslocando-se por ambientes noturnos, contemplando as ruínas da industrialização e atravessando com a pele a falência de antigas fábricas e boates, André Venzon investiga sua própria existência – um corpo que omite e destaca uma identidade forjada no encontro entre indivíduo e sua cidade. Nele, mesclam-se os anos de uma mesma – ainda que incontrolável – Capital. Porto Alegre invade seu corpo, sua casa, sua história e se refaz no seu imaginário de tapumes, um objeto que assegura o que há de mais valioso num indivíduo: sua mais completa contradição.
O artista, assim como o material que carrega ao longo de sua trajetória, molda sua individualidade ao passo que modela e dá novo significado à paisagem. Quer proteger, destacar e revelar o mundo que lhe foi apresentado: um bairro de imigrantes, a história de uma floresta, o signo de abandono, falência e insensibilidade formando a totalidade de um lugar e de uma vida. Elementos esses que se tornaram um só. Na exposição Paisagem Sem Volta, que reúne uma série de projetos desenvolvidos ao longo dos últimos anos, percebe-se a impossibilidade de dissociar o sujeito de suas paixões, de seus desejos e de seu temor. Unindo seus tapumes com os hotéis de Igor Sperotto, a exposição destaca um artista que ama, deseja e conhece os medos de uma região urbana, o 4° Distrito do qual já não pode mais se separar. Está imantado, impregnado e dissolvido em seu corpo o rosa protetor, o rosa camuflagem e o rosa de celebração. Diferentemente das combinações de cores possíveis, essas são cores sonhadas, repletas de utopias, visões da infância, memórias dos irmãos, pais, amigos e amores. É um rosa para dentro.
Bastaria caminhar pelo seu ateliê, olhar os primeiros trabalhos, identificar a estante com presentes de amigos, reparar no acúmulo de potência que o alimenta nesse ambiente e chegaríamos a uma conclusão: tudo o que falta no mundo lhe preenche. As obras de arte, os livros, o acervo pessoal, os papéis de cada evento, as anotações, o apreço pela lembrança, por vivenciar a experiência de tentar nunca mais esquecer. Tudo aquilo que se apaga, que desaparece aos poucos numa cidade, que se torna invisível para determinadas camadas sociais e que se desprende do afeto recebe acolhimento e devoção do artista. Sua prática é assim: uma vontade de conseguir desejar tudo; e uma força para reconhecer a dimensão das coisas que foram perdidas. Não permitir a destruição, não deixar avançar o horror e não ceder ao sentimento de incompreensão da vida. Haverá sempre um lugar e um corpo para tudo o que requer tempo. Os Fechamentos, o Zentai e as Tapeçarias – em destaque nessa exposição – são elementos fundamentais para compreendermos a relação entre mundo, corpo e objeto trabalhada em sua vida.
O tapume nas fachadas de prédios, no centro da cidade, obstruindo estradas e protegendo o lugar, aos poucos se transforma no material com que André Venzon reveste sua pele, sua identidade e constrói questionamentos sobre vulnerabilidade, singularidade, poder. Pretende destacar o que o trabalho fez com o sujeito que o opera: um artista transformando-se num objeto banal, de proteção, manuseio e signo de construção e segredo.
Seja revestindo completamente a si mesmo ou transformando as cabeças dos outros – colocando um quadrado rosa para cobrir o rosto –, a obra de Venzon busca nos inserir numa visão interna e até mesmo solitária sobre a vida. O jogo entre se abrir para o mundo ao nosso redor, mas não abandonar o olhar para um interior colorido reverbera uma multiplicidade de conflitos que transformam o sujeito e o colocam em confronto com a sua subjetividade. Ao perceber aquilo que fecha, reveste, protege e camufla, André pontua as necessidades de pessoas e lugares num mundo marcado por inúmeros projetos de destruição. A falência de bairros, a precarização da vida, a injustiça de um modelo econômico, a violência e a venda do próprio corpo e o esquecimento são parte fundamental de uma reflexão sobre a cidade, as pessoas e a arte. Reflexão essa que não se desprende daqueles que fazem de sua própria obra um conjunto de força. É a mescla entre o peso do mundo e a beleza rosa dos sujeitos comprometidos com a manifestação da singularidade, potência e dualidade do seu ambiente de origem.
A exposição
Paisagem Sem Volta está em cartaz no Atelier V744 (Visconde do Rio Branco, 744). A mostra, uma coleção de imagens de André Venzon sobre tapumes (com curadoria de Nicolas Beidacki), dialoga com Hotéis no Exílio, série de fotos de hotéis apresentadas como cartões-postais por Igor Sperotto (curadoria: Niura Legromante). Ambas podem ser visitadas até 25/2, de quarta a sexta-feira, das 14h às 17h.