Por Alexandre Santos
Professor do Instituto de Artes da UFRGS, autor de “A Fotografia como Escrita Pessoal: Alair Gomes e a Melancolia do Corpo Outro” (2018)
Embora natural de Valença, no interior fluminense, foi na cidade do Rio de Janeiro que Alair Gomes (1921-1992) desenvolveu a sua fotografia como cronista do potencial erótico intrínseco ao balneário mais famoso do mundo. Porém, antes de se tornar o fotógrafo hoje reconhecido e pertencente a importantes coleções de arte no mundo inteiro, a sua vida foi a de um homem inquieto, cheia de reviravoltas e conflitos. Como conjugar, no Brasil conservador do pós-guerra, o homem de ciência, o pensador e o artista eminente que fez da própria vida a base do seu trabalho?
Formado em Engenharia, ele logo desistiu da profissão para se dedicar ao livre pensamento filosófico. Acabou se tornando professor no Instituto de Biofísica da Universidade do Brasil, onde aprendeu as bases do trabalho laboratorial em fotografia. Paralelamente, desde muito jovem, talvez uma marca da sua geração, Gomes escrevia compulsivamente, como um verdadeiro “grafômono de si mesmo”, alcunha dada por um amigo, aliás muito oportuna para que se pense o seu legado artístico.
Seus ensaios filosóficos são arrojados e entrelaçam ciência, arte, religião e erotismo a elementos autobiográficos. Merecem menção o inaugural Drôle de Foi (1942-1947) e o inacabado Homoeroticus (1992). Os seus textos literários, como o Erotic Diary (1950-1980), sobre seus amores platônicos por outros rapazes; assim como os diários de viagens aos Estados Unidos e à Europa, respectivamente Glimpses of America (1962-63) e A New Sentimental Journey (1983), permitiram desenvolver uma narrativa íntima que nutriu a sua fotografia.
A descoberta artística da imagem fotográfica chegaria somente a partir de 1965, linguagem que ele desenvolveria à exaustão até o seu assassinato, em 1992, um crime de caráter homofóbico. Intenso, ele logo se tornou um fotógrafo da cena cultural do Rio. Registrou peças teatrais, shows e lugares libertários, como o Píer de Ipanema e seus frequentadores. Realizou retratos memoráveis de intelectuais e artistas de teatro, cinema e TV. Acompanhou por muitos anos o Carnaval popular de rua, assim como os desportistas da cidade, as cenas de periferia e os arroubos contraculturais do “desbunde” carioca.
Foi, contudo, através da imagem seriada que se solidificou o seu trabalho autoral propriamente dito. Os diversos conjuntos fotográficos que produziu alimentaram o cruzamento de várias paixões: o apreço pela ficção literária e cinematográfica, assim como pela arte clássica e sua contribuição na representação do corpo masculino na história da arte. Por outro lado, a montagem de grupos fotográficos sequenciais permitiu ao artista uma poética cujo processo remete ao princípio do cinema, além de propiciar um viés confessional semelhante aos dos seus diários.
Em séries como A Window in Rio (c. 1980) e Sonatinas, Four Feet (c. 1977), o fotógrafo apostou na tomada oblíqua e protegida, a partir da janela do seu apartamento em Ipanema, com o auxílio de uma lente objetiva. Já nos Beach Triptychs (déc. 1970/80) ele se torna uma espécie de flâneur contemporâneo, que encontra seus fotografados ao acaso, em uma deriva pela orla carioca.
Contudo, em trabalhos mais radicais, como a grandiosa Symphony of Erotic Icons (1966-1977), formada por 1767 imagens, ele desenvolve uma relação mais próxima dos seus modelos. Os corpos nus dos rapazes, registrados bem de perto em seu estúdio, sugerem paisagens, ao mesmo tempo em que remetem à escultura clássica ou aos escorços renascentistas. Interessava ao artista a intensidade da experiência de fruir o conjunto total, como se as imagens fossem uma torrente musical que conduziria a uma epifania sagrada.
O olhar fotográfico oblíquo, em plongée, que caracteriza as tomadas de algumas de suas séries, cria uma memória da zona sul carioca desarticulada do protocolo turístico da cidade maravilhosa, com mulheres seminuas, para investir na beleza masculina em igual condição. Nesse sentido, o artista aborda o tabu do corpo masculino como objeto de desejo e cria um contradiscurso visual. Tal aspecto ganha um contorno ainda mais nítido no contexto em que produziu. Primeiramente o de uma ditadura militar, mas para além dela o de um país estruturalmente patriarcal, machista e homofóbico.
A memória fotográfica do Rio de Janeiro através das lentes de Alair Gomes é complexa, não somente pelo processo arrojado da sua construção, carregada de referenciais eruditos subjacentes, mas também por trazer uma condição oblíqua, fora da rota, como resistência silenciosa aos apagamentos históricos programados. Sua fotografia, melancólica e ambígua, carrega uma sedução inexorável em sua anárquica traição dos discursos hegemônicos sobre o desejo, inaugurando um divisor de águas, também oblíquo, na própria história da arte e da fotografia contemporâneas no Brasil. Eis um artista cujo centenário merece ser reverenciado, do mesmo modo que o seu espólio de mais de 160 mil negativos, depositados na Biblioteca Nacional, merece ser continuamente redescoberto.