Fotógrafo com larga experiência no jornalismo e, mais recentemente, no mercado editorial (tem 19 livros com compilações de imagens, boa parte sobre a identidade e as paisagens gaúchas), Leonid Streliaev, o Uda, aderiu aos NFTs.
NFT é a sigla para “token não fungível”, sendo “token” o nome do registro de um ativo em formato digital, e “não fungível”, o que o destaca como algo ao mesmo tempo não perecível, incontestável e original. Pode ser um objeto, uma camiseta, um texto, ao qual se tem acesso – exclusivo – online.
Mas tem se difundido mais no ambiente artístico, a ponto de transformar o próprio mercado da arte. No Brasil, o ilustrador Uno de Oliveira já arrecadou US$ 3,2 mil em uma de suas criações. Lá fora, a transformação parece mais evidente: a colagem Everydays: The First 5.000 Days, do artista visual Beeple, foi arrematada por US$ 69 milhões, em leilão realizado pela tradicional Christie’s.
A característica digital permite estender o status de obra de valor não fungível não apenas a uma imagem que só existe em uma tela, não palpável, mas também, por exemplo, a um e-mail ou a um post de uma rede social. É curioso, nesse sentido, que entre os 10 trabalhos que Uda transformou em NFT esteja uma imagem da Lua acompanhada de uma colagem com o telegrama enviado pela agência de notícias France-Presse (AFP) no exato momento em que o primeiro homem, no caso o astronauta Neil Armstrong, pisou na Lua, às 20h17min de 20 de julho de 1969. É “o primeiro tuíte da Lua”, como Uda intitulou o trabalho.
– Eu estava ao lado da máquina de teletipo da Editora Abril (onde trabalhava à época) no momento e guardei a relíquia até hoje – conta. – O original do telegrama está preservado comigo há 52 anos.
As outras nove imagens são um Laçador pop, um retrato de Erico Verissimo colorido digitalmente, uma criança indígena das Missões com um celular, entre outras (veja-as todas aqui). Fotos, de algum modo, identificadas com a cultura regional sobre a qual Uda se debruçou nos últimos anos. Elas estão disponíveis em moeda ethereum por valores que, equivalentes em dólar, vão de US$ 1,2 mil a, no caso da citada colagem do telegrama sobre a Lua, mais de US$ 1,1 milhão.
Na entrevista a seguir, o fotógrafo explica por que escolheu essas obras, por que seus valores variam tanto e como ele avalia a experiência com os NFTs.
O NFT ainda é algo pouco conhecido e testado pelos artistas. Por que apostar nisso?
Temos de apostar em todas as inovações. O mundo e a vida pedem inovações. Há 50 anos brincávamos de telefone sem fio usando um fio: eram duas latinhas, uma em cada lado, unidas por um barbante. Assim falávamos. E hoje é sem fio mesmo! Uma década atrás, jamais imaginaríamos deixar de lado a fotografia convencional, passando a usar câmeras digitais. Minha mudança do analógico para o digital foi tensa e difícil. Resisti até o final. Meu argumento até que era justo. Eu chamava a câmera digital de escargot: todos achavam bacana, mas ninguém comia. O WhastApp resumiu a nossa comunicação, tornando-a quase monossilábica. E agora, finalmente, chegou o NFT, abrindo nossos horizontes criativos até alcançar as nuvens. Nas nuvens estão o poder, os relâmpagos e a chuva que traz vida. E nas nuvens, em breve, estarão nossas criações, ao alcance que qualquer um. Mino Carta, meu chefe quando fui fotógrafo da Veja, elogiava meu trabalho dizendo: “Não desgostei”. Ele jamais dizia “gostei”. E assim, olhando a vida refletida num espelho, jamais poderemos dizer que dessa água não beberemos.
Você disponibilizou fotografias com temas mais locais, outras menos, e várias com intervenções usando softwares de edição – uma delas aplicando a logomarca do Windows sobre o Pampa. Qual foi o critério para a escolha das imagens?
Meu pai, um imigrante russo, sempre me dizia que chegou ao Brasil no fundo de um navio, “lá onde bate o torpedo”. Nas noites de inverno, me contava histórias do Taras Bulba, do frio e dos campos da sua terra. Aquilo me levou ao encanto com a infinita horizontalidade e a silenciosa monotonia do nosso Pampa. Percebi que essas conexões estão dentro de nós. Então, passei a me autodenominar “fotógrafo sulrealista”. Cada fotógrafo deve ter sua temática preferida, uns fotografam crianças e newborn, outros retratam esportes, outros se dedicam à guerra. Eu escolhi a paz. A mesma dos campos gaúchos e seu dourado característico do outono. Cada macaco no seu galho. Isso não impede que, de vez em quando, eu vá fotografar angústias. Mas, no geral, a minha temática preferida é o Rio Grande sulrealista.
Por que a imagem da Lua com o telegrama sobre ela tem uma avaliação tão mais alta do que as demais? O que é importante para dar valor a um NFT?
A meu ver, o que mais agrega valor numa obra de arte em NFT é seu ineditismo. A obra de Beepe vendida por US$ 69 milhões foi produzida durante 14 anos, criando um mosaico impressionante. O telegrama da AFP que fotografei foi postado ao mundo às 20h17min do dia 20 de julho de 1969, no exato instante em que o astronauta Neil Armstrong colocou seu pé na Lua. Esse telegrama foi postado exatamente naquele momento! Eu estava ao lado da máquina de teletipo da Editora Abril no momento e guardei a relíquia até hoje. O original do telegrama está preservado comigo há 52 anos. Trata-se do primeiro registro jornalístico just-in-time da alunissagem. O preço que coloquei considero justo.
E quanto aos valores dessas fotos fora do universo dos NFTs: as diferenças são grandes?
Há poucos anos que a fotografia passou a ter status de obra de arte, figurando em exposições nas galerias comerciais, impressas em papel fine art. Até então a fotografia era tratada de outra forma, sem aquele valor agregado. Nos NFTs, em verdade, cada um coloca seu preço e valoriza conforme seus próprios critérios. Acho que os NFTs irão democratizar o acesso e, por conseguinte, os preços. É tudo uma questão de mercado. A imagem pop de Erico Verissimo: ao ser vendida, farei a doação do valor para o Acervo Literário Erico Verissimo (Alev), ajudando assim a manter viva a memória do maior nome da cultura gaúcha.
Como você avalia a experiência de anúncio das imagens até aqui?
Minhas 10 fotos estão expostas nos sites NFTrend, o primeiro marketplace de NFT do Brasil, e no Opensea, que, segundo a reportagem publicada no caderno DOC de Zero Hora (em 17 e 18 de abril), é um dos maiores. Ou seja, estão expostas nos melhores lugares. Eu sempre trouxe inovações em meu trabalho. Fui o primeiro fotógrafo gaúcho a fazer uma exposição com Xerox colorido em 1977, uma inovação na época.
Você acredita que o NFT de fato vai mudar tudo no âmbito dos direitos autorais e da comercialização de obras ou se trata de algo que coexistirá com o comércio mais tradicional e as legislações já estabelecidas sobre propriedade artística e intelectual?
Existe uma expressão na minha mente que responde essa pergunta. É o tal do encanto do cinema, que jamais será substituído pelos Netflix da vida. O escurinho do cinema se iguala ao comércio tradicional de obras de arte. Como é bom colocar um quadro na parede... As questões dos direitos autorais e das legislações sobre a propriedade artística e intelectual são como um tijolo na testa, uma questão indigesta. Creio que os NFTs estão rompendo as barreiras e transgredindo as normas atuais pertinentes ao assunto. Na verdade, existirão muitos debates sobre esse tema ainda não pacificado em leis ou jurisprudências. Os NFTs chegaram para revolucionar o convencional comércio tradicional, e com certeza teremos muitas controvérsias e polêmicas a esse respeito. Se um automóvel poderá dirigir sem motorista, por que uma obra de arte não poderá ser virtual? Essas minhas 10 imagens estão certificadas e registradas via blockchain.