O clima era de calmaria na última quarta-feira, no Parque Lage, onde está encravada a Escola de Artes Visuais (EAV), espaço que abriga, desde o dia 18 de agosto, a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença. Cancelada abruptamente em setembro do ano passado pelo Santander Cultural, após cerca de um mês em cartaz em Porto Alegre, em razão de protestos de quem viu nas obras incentivo à “pedofilia” e à “zoofilia”, a mostra chegou ao Rio de Janeiro com pouco alarde de grupos contrários à sua proposta curatorial.
A principal confusão no local, de acordo com relato de um dos seguranças que organizavam a fila para conferir a exposição, foi uma briga, dias antes, protagonizada por macacos que costumam descer a Floresta da Tijuca e frequentam o local em busca de alimentos.
— O Rio de Janeiro está ferradaço, e o cara vai se preocupar com uma exposição? — questiona a artista plástica Laura Lúcia Limongi, 46 anos.
Visitando pela terceira vez a Queermuseu, ela acredita não haver ambiente neste momento na capital fluminense para as manifestações que tomaram conta da capital gaúcha em 2017 — em meio a uma crescente onda de violência, o Rio presenciou na semana passada a morte de três militares após a ocupação do Gabinete de Intervenção Federal nos complexos Alemão, Penha e Maré, na Zona Norte, iniciada no dia 20.
— É um pessoal que aqui não encontra eco. Tem tanta coisa ruim acontecendo na cidade — afirma Laura, em referência ao pequeno grupo que protestou na abertura da mostra.
O projeto em solo carioca é fruto de financiamento coletivo que arrecadou R$ 1.081.156 por meio de 1.724 doações de 1.659 colaboradores – a mostra original, no Santander Cultural, havia sido viabilizada com R$ 800 mil via Lei Rouanet. Também colaboraram para a campanha um show beneficente de Caetano Veloso, em março, e um leilão de obras doadas por artistas. O valor financia não apenas a exposição, mas também o Fórum Queermuseu (com debates sobre diversidade, arte, censura e fake news) e o Núcleo de Ação Educativa. Parte do dinheiro também foi investida na adaptação das Cavalariças, onde os trabalhos estão expostos.
Embate concentrado no âmbito jurídico
Fora as manifestações isoladas de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), Liga Cristã e Templários da Pátria, a polêmica em torno da Queermuseu tem se restringido sobretudo ao âmbito jurídico. No dia da abertura, o juiz de plantão Pedro Henrique Alves, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, concedeu uma liminar vetando a entrada de menores de 14 anos na exposição, mesmo que acompanhados por seus responsáveis. A decisão foi revogada três dias depois pelo desembargador Fernando Foch, da Terceira Câmara Cível, que questionou a validade jurídica da proibição. “Os titulares do poder familiar é que podem proibir, limitar, condicionar ou liberar o acesso daqueles sobre quem o exercem. São eles os juízes dessa conveniência, sujeitos às sanções do mau uso da potestade”, diz trecho do texto da decisão.
Mesmo com a liberação da Justiça, há na entrada da exposição um aviso que afirma não ser recomendado o conteúdo da mostra para menores de 14 anos desacompanhados de seus pais ou responsáveis.
As obras que provocaram polêmica em Porto Alegre não têm chocado os visitantes. Foi o que constatou a reportagem. Pelo contrário. Acusada de desrespeitar símbolos de culto religioso, Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, tela de 1996 do porto-alegrense Fernando Baril, era um dos trabalhos mais fotografados. No Rio a turismo, o professor de geografia Cristiano Calisto, 40 anos, que mora em Brasília, usou a obra como pano de fundo para uma selfie.
— Vendo a obra, percebi o quão imbecil foi a polêmica gerada em torno dela — diz Calisto, que, mesmo declarando ter gostado do conjunto da exposição, destaca que esperava mais da mostra, “por conta da polêmica”.
Para o publicitário mineiro Ricardo Piovesan, 29 anos, a Queermuseu “cutuca na ferida da hipocrisia da galera”. Mais do que impressionado com o conteúdo dos trabalhos, o visitante afirma ter gostado de ver a diversidade dos jovens que trabalham no local.
— Chamou a atenção que o staff é trans, gay, negro. Valorizou as minorias — elogia.
Entre os guias, Bianca Kaluton, uma mulher transexual e negra de 30 anos, se destacava. Pela primeira vez trabalhando em uma exposição de arte, ela falava com empolgação sobre as obras Retrato de Rodolfo Jozetti (1928), de Candido Portinari, e Halterofilista (1989), de Fernando Baril, posicionadas lado a lado.
— Eu me identifico com os artistas. Estar aqui me deu essa possibilidade de falar com mais pessoas — comemora Bianca.