Cancelada em setembro de 2017, menos de um mês após sua abertura, a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira se tornou um verdadeiro campo de batalha de uma guerra cultural. Enquanto grupos conservadores e religiosos acusavam a mostra sobre diversidade sexual em exibição no Santander Cultural, em Porto Alegre, de incentivar a "pedofilia" e a "zoofilia", setores ligados às artes consideravam as críticas infundadas e chamavam o fechamento de censura.
Quase um ano depois, a Queermuseu ganhará nova edição a partir de sábado (18) na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em temporada até 16 de setembro. A programação musical que acompanha o dia de abertura começará às 11h e se estenderá até a noite.
Se a mostra original havia sido viabilizada com R$ 800 mil por meio da Lei Rouanet, o projeto em solo carioca é fruto de um financiamento coletivo recorde no Brasil que arrecadou mais de R$ 1 milhão. Também colaboraram para a campanha um show beneficente de Caetano Veloso, em março, e um leilão de obras doadas por artistas. O valor financiará não apenas a exposição, mas também o Fórum Queermuseu (com debates sobre diversidade, arte, censura e fake news) e o Núcleo de Ação Educativa, os dois últimos coordenados por Ulisses Carrilho, curador da EAV.
Obras polêmicas estarão presentes
Para receber a exposição, as Cavalariças do Parque Lage foram reformadas. O local ganhou câmeras, e a segurança será reforçada durante o evento. Devido ao tamanho reduzido do novo espaço expositivo em relação ao Santander Cultural e devido ao empréstimo de algumas obras, a nova Queermuseu será um pouco menor, mas ainda assim a seleção é expressiva. Serão 214 obras de 82 artistas nacionais e internacionais de meados do século 20 até a atualidade, com nomes do calibre de Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Guignard, Leonilson, Lygia Clark e Yuri Firmeza. Trabalhos que foram alvos de polêmica, como Cena de Interior II (1994), de Adriana Varejão, e Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva (1996), de Fernando Baril, estão confirmados na remontagem.
– A expectativa de público já na abertura é extraordinária. Tenho certeza que será a exposição mais visitada da década e que baterá todos os recordes – projeta o curador da exposição, Gaudêncio Fidelis (leia a entrevista na íntegra abaixo), que se posicionou contra o encerramento da temporada porto-alegrense. – Mas é importante entender que esse fenômeno se dará, na minha opinião, porque inúmeras pessoas agora entendem que é direito delas visitar a exposição, um direito de que elas não devem nunca abdicar.
Para os organizadores, a remontagem é uma forma de fazer justiça à Queermuseu. Ainda em setembro de 2017, o Ministério Público do Rio Grande do Sul avaliou não haver crime de pedofilia na mostra. Naquele mês, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas examinou 778 mil postagens no Twitter e concluiu que 13% das interações contra a exposição e 7% das interações a favor foram provenientes do uso de robôs, ou seja, perfis falsos. Para o diretor da EAV, Fábio Szwarcwald, a posição contrária à exposição veio de "um setor muito pequeno da sociedade com enorme capacidade de mobilização via redes sociais":
– O uso de perfis falsos deu a entender que havia um grande posicionamento contra, mas eram poucos grupos que conseguiram multiplicar sua opinião via robôs, criando uma falsa expectativa em toda a nossa sociedade.
O seguinte aviso será afixado na entrada: "Esta exposição contém obras de arte com nudez, conteúdo sexual e uso de simbologia religiosa, que poderão ofender os valores morais de alguns. Recomendamos levar isso em consideração antes de entrar no espaço expositivo". A Escola de Artes Visuais do Parque Lage informa que não impedirá o acesso de crianças à exposição. Por recomendação do Ministério Público do Rio, o texto na entrada complementará que o conteúdo "não é recomendado para menores de 14 anos desacompanhados de seus pais ou responsáveis".
* Atualização: Após o fechamento da edição impressa desta reportagem, a assessoria da exposição atualizou os números. Antes, havia sido divulgado que contaria com 223 obras de 84 artistas.
Gaudêncio Fidelis: "A exposição acontece no Rio, mas reabre para a sociedade como um todo"
Leia, na íntegra, entrevista com o curador da Queermuseu, concedida por e-mail a GaúchaZH
Qual é o seu sentimento com a reabertura da exposição Queermuseu, agora no Rio?
Mais do que o senso de um dever cumprido por ter empreendido uma extraordinária luta para barrar o avanços dos setores obscurantistas cujas ataques vimos claramente no processo da Queermuseu, é a satisfação de ver a exposição reaberta para a sociedade brasileira. Creio que é importante que abordemos esta enorme batalha em perspectiva, tendo em vista que vencemos e impusemos uma imensa derrota ao fascismo do MBL (Movimento Brasil Livre) e aos fundamentalistas. Fico muito feliz ao ver que enormes parcelas da sociedade progressista não só se juntaram a essa luta mas também viram claramente que lutar pelas liberdades individuais é necessário e vale a pena. E mais que isso, que é que possível que saiamos vencedores. A exposição acontece no Rio, mas reabre para a sociedade como um todo.
A polêmica pode ter despertado ainda mais curiosidade do público sobre a exposição?
A expectativa de público já na abertura é extraordinária. Tenho certeza que será a exposição mais visitada da década e baterá todos os recordes. Mas é importante entender que esse fenômeno se dará, na minha opinião, porque inúmeras pessoas agora entendem que é direito delas visitar a exposição, um direito que elas não devem nunca abdicar. Muitas vezes temos exposições e deixamos de visitá-las. Quando um crime como esse acontece, de uma exposição dessa grandiosidade ter sido fechada, nos damos conta o quanto nossos direitos foram aviltados, o quanto perdemos e ainda, de que a liberdade de escolha é algo que temos preservar a todo custo em uma sociedade democrática.
Poderia lembrar brevemente os temas, discussões e referências que pautaram sua curadoria?
Esta exposição reivindica um campo de debate e diálogo sobre as questões de expressão e identidade de gênero, sobre a diferença e sobre a diversidade em seu sentido mais amplo. Eu tenho dito que ela é a exposição que inaugura no centro da sociedade brasileira o debate sobre gênero e sexualidade. Vem daí o seu extraordinário impacto. Porque quando falamos da luta pelos direitos das mulheres e as plataformas feministas, as históricas lutas da comunidade negra, contra o racismo e a invisibilidade, aquelas da comunidade LGBTQI e outras tantas, como as relações de trabalho e ainda as disputas políticas e ideológicas pelo conhecimento, estamos falando sempre de suas implicações com o gênero e a sexualidade. Não por outra razão, esse debate colide com uma polarizada disputa realizada por lideranças políticas – tanto aquelas com identificação com a direita e a ultradireita como por aquelas que representam os setores mais progressistas da sociedade.
Claro que o Parque Lage e o Santander Cultural são lugares que exigem diferentes soluções curatoriais, mas do ponto de vista conceitual alguma coisa foi mudada na seleção de obras e na disposição delas no espaço expositivo?
Sim, com certeza. A Queermuseu foi concebida para o espaço do Santander, e não estava prevista sua itinerância. Mas ela é uma construção conceitual de grande mobilidade. Para o Parque Lage, utilizei um processo de deslocamento de paralelismo e perpendicularidade dos planos das paredes em relação a como a exposição foi originalmente montada, para reconstruí-la em um espaço diferente, mantendo a sua integridade conceitual. Isso significa que trabalhei para deslocar os planos em duas direções, deslocando obras por consequência. As justaposições e "ilhas constelacionais" de obras forma mantidas. Essa nova apresentação é a mesma da original. Não houve nenhum acréscimo. Tudo isso para permitir a reinstituição museografia da exposição em um espaço diferente daquele para o qual foi concebido. Um pequeno grupo de obras foi suprimido para possibilitar que a exposição coubesse no novo espaço que é um pouco menor. Mas estas obras não implicaram a retirada de nenhum nome da lista de artistas, a exceção de três por razões de indisponibilidade de empréstimo.