A juventude dos anos 1970 tinha points de predileção na Capital, como o reduto de bares conhecido como Esquina Maldita (Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite, no Bom Fim). Outro ponto de encontro era o lago do chafariz da Redenção, ao cair da tarde. Muitas vezes, os jovens amanheciam trocando ideias e tocando violão no parque, num tempo em que a cidade era segura para se fazer isso. Mas, quando a galera queria se reunir em local abrigado, a escolha recaía sobre casas que, geralmente, funcionavam como centros culturais.
Era o caso do apartamento do casal Lígia Savio e Luiz Eduardo Fontoura, o Peixe – ela poeta, ele arquiteto –, na Avenida Venâncio Aires. O núcleo da tribo que por ali aportava incluía personagens que participavam ativamente dos movimentos culturais de vanguarda, como o cantor e compositor Bebeto Alves, o músico e escritor Wesley Coll e o ilustrador Júlio Viega, o Flash.
A lista abrangia também os artistas plásticos Milton Kurtz, Mário Röhnelt, Ricky Bols e Neny Scliar, além de José do Patrocínio Ruas Costa, o Zé do Pão, um dos pioneiros da produção e da comercialização de pão integral em Porto Alegre.
– Quando estávamos juntos, formávamos uma família, mais do que quando ficávamos ao lado de parentes. Estávamos irmanados pelos ideais da época – explica Lígia.
A maior parte dos apartamentos dos jovens dos anos 1970 exibia um cenário rústico e improvisado. Sofás, por exemplo, eram artigos dispensáveis. Bastavam almofadões espalhados pela sala, de preferência perto do aparelho de som, para curtir o mais recente disco de Caetano ou do Pink Floyd. Independentemente do gosto musical, sempre havia espaço para que a galera produzisse a sua própria arte. Logo que se instalou no apê, Peixe desparafusou a porta do quarto para deixá-la apenas encostada junto à parede. Com isso, a porta virou uma espécie de mural, no qual os habitués da casa podiam expressar livremente sua criatividade, através de colagens ou desenhos. Além disso, sobre a mesa da sala repousava uma folha de papel em branco, ao lado de uma máquina de escrever, para eventuais arroubos literários.
– Alguém escrevia um verso ou desenhava algo. Depois, vinha outro e dava continuidade ao poema ou ao desenho. Assim, todos contribuíam. Havia uma efervescência cultural naquele apartamento – recorda Lígia.
Conforme Bebeto Alves, o apê do Peixe era uma “usina de compartilhamento de ideias e relações afetuosas”. Dois personagens centrais dessa rica história faleceram em 2022 – o próprio Bebeto e o Peixe. Recentemente, em 18 de fevereiro de 2024, partiu Wesley Coll, que havia fixado residência em Nova York desde a década de 1980. Há dois anos, ele visitou Porto Alegre para lançar seu livro Aquela Vaca Tá Louca, do qual mostro para vocês esse pequeno trecho: “Se me perguntas, acho que cantamos, dançamos, nos despimos, nos beijamos, tocamos a beirada da ribanceira sem fundo, mas, para falar a verdade, não sei bem o que fazíamos quando estávamos loucos”.