Com o avanço do coronavírus, mulheres estão cada vez mais expostas e vulneráveis. São maioria entre os profissionais da saúde, enfrentam sobrecarga das tarefas domésticas e, com o isolamento social, ainda veem multiplicadas as ameaças de feminicídio. Os riscos levaram a ONU Mulheres — entidade internacional voltada à defesa da igualdade de gênero — a recomendar medidas para atenuar o impacto da pandemia no universo feminino (leia mais detalhes no fim do texto).
Desde março, o órgão vem chamando atenção para o assunto. No último dia 13, em vídeo, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, reforçou o alerta:
— Peço aos governos que coloquem mulheres e meninas no centro de seus esforços de recuperação da covid-19. Isso começa com as mulheres como líderes, com igual representação e poder de decisão.
Ainda que os homens sejam maioria nas estatísticas de letalidade, elas estão em maior número na linha de frente do combate à doença — e mais suscetíveis à contaminação. Na enfermagem, por exemplo, constituem 85% da força de trabalho.
— Historicamente, há uma percepção de cuidado vinculada às mulheres, e a ONU mostra que elas realmente estão na ponta, ajudando as pessoas. Temos de olhar para isso de forma diferenciada, da perspectiva de gênero. Quem são essas enfermeiras, médicas, cuidadoras? A que riscos estão expostas? Onde estão os filhos delas? Como fica a divisão das tarefas domésticas? Tudo precisa ser levado em conta na hora de propor políticas públicas — reforça Carmen Hein de Campos, professora de Direito da UniRitter e conselheira-diretora da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos.
O estresse provocado pela sobrecarga de afazeres no lar já é uma realidade. Devido ao saturamento dos sistemas de saúde e ao fechamento de creches e escolas, "as tarefas de cuidado recaem principalmente sobre elas, que, em geral, têm a responsabilidade de cuidar de familiares doentes, pessoas idosas e crianças", destaca um dos documentos produzidos pelo organismo internacional, com foco na América Latina e no Caribe.
Há ainda outros problemas. Segundo a ONU Mulheres, o avanço do coronavírus e as restrições à circulação estão levando a uma escalada da violência. Os riscos crescem "devido ao aumento das tensões em casa". Para piorar, as sobreviventes podem enfrentar "obstáculos adicionais" para buscar proteção em meio à quarentena.
— Eu diria que esse é o aspecto mais problemático. Quando o agressor e a vítima ficam confinados, não tem como ter um resultado diferente. E ainda há a crise financeira decorrente do coronavírus. Muitas vítimas acabam reféns do algoz — afirma Jussara Prá, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da UFRGS.
A especialista cita duas iniciativas brasileiras que vão ao encontro dos alertas da ONU. Uma delas é o projeto de lei de Proteção à Mulher na covid-19. De autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), a proposta é subscrita por parlamentares de diferentes partidos e, se aprovada, tornará obrigatório o atendimento aos pedidos de socorro de vítimas de violência durante a pandemia.
A outra ação é o pagamento de R$ 1,2 mil em auxílio emergencial para mulheres chefes de família. O repasse foi aprovado no Congresso e já está sendo feito pelo governo Jair Bolsonaro. Mas nada disso é suficiente.
De acordo com a ONU Mulheres, cabe aos governos dar voz a essa parcela da população na tomada de decisões, garantir a disponibilidade de dados para embasar suas ações, oferecer apoio prioritário às profissionais que atuam na contenção da enfermidade e reforçar os serviços de prevenção às agressões.
— Vai depender de cada governo de cumprir essas recomendações. As questões que a ONU levanta estão totalmente afinadas com os instrumentos políticos e jurídicos internacionais. O que se está propondo não é nada diferente do que os países já acordaram com as Nações Unidas. Basta ter vontade política para aplicar. Coincidentemente ou não, os países que mais êxito tiveram, até agora, no combate à covid-19 têm lideranças femininas — destaca Jussara.
Na avaliação de Carmen, o momento de mudar chegou:
— Esse é o grande aprendizado que deve ficar dessa pandemia.
O que diz a ONU Mulheres
Por que a pandemia tende a atingir mais a parcela feminina da população
- Elas estão mais expostas ao coronavírus, porque 70% dos profissionais da área de saúde no mundo são mulheres
- As medidas de isolamento social estão contribuindo para elevar as estatísticas de violência doméstica e feminicídio no mundo
- As mulheres são apenas 25% dos parlamentares e menos de 10% dos chefes de Estado ou de governo no mundo e, portanto, não têm poder de decisão na pandemia
- Elas estão sendo ainda mais sobrecarregadas com tarefas domésticas e cuidados com outros membros da família, o que eleva a carga de estresse
- Com o fechamento de escolas e creches, a capacidade das mulheres de se envolverem em trabalho remunerado enfrenta barreiras extras. Globalmente, elas continuam sendo remuneradas 16% menos que os homens, em média, e a disparidade salarial sobe para 35% em alguns países. Em tempos de crise como esse, elas geralmente enfrentam a opção injusta de desistir do trabalho remunerado para cuidar de crianças em casa
- Há evidências de que os impactos econômicos da covid-19 afetarão mais a ala feminina, já que mais mulheres trabalham em empregos mal remunerados, inseguros e informais
Recomendações da entidade para atenuar os impactos da pandemia sobre as mulheres
- Garantir a disponibilidade de dados por sexo, incluindo taxas de infecção, impactos econômicos, carga de atendimento e incidência de violência doméstica e abuso sexual
- Incorporar as perspectivas de gênero e as orientações de especialistas na área nos planos de resposta e nos recursos orçamentários
- Fornecer apoio prioritário às mulheres na linha de frente de combate à doença, melhorando o acesso a equipamentos de proteção e a produtos de higiene menstrual, além de acordos de trabalho flexíveis para aquelas que tenham pessoas sob seus cuidados
- Garantir voz igual para as mulheres na tomada de decisões na resposta e no planejamento de impacto a longo prazo
- Garantir que as mensagens de saúde pública sejam direcionadas adequadamente às mulheres, incluindo as mais marginalizadas
- Desenvolver estratégias para mitigar o impacto econômico do surto nas mulheres e desenvolver a resiliência entre elas
- Proteger serviços essenciais de saúde para mulheres e meninas, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva
- Priorizar os serviços de prevenção e resposta à violência de gênero nas comunidades afetadas pela covid-19