Alguns dias após vender passagens aéreas de ida e volta do Rio de Janeiro a Paris, com escala em Madri, por preços entre R$ 1,1 mil e R$ 1,3 mil, aproximadamente, a companhia Iberia cancelou de forma unilateral os bilhetes e frustrou clientes. Uma grande mobilização vem ocorrendo, em rede social, com consumidores se dizendo lesados pela empresa. A hashtag #iberiahonreparis gerou amplo engajamento. Contatada, a companhia aérea não se manifestou sobre o tema. Veja, no fim desta reportagem, como proceder se você se sentir prejudicado em situação semelhante.
Alguns gaúchos estão entre os atingidos pelo caso da Iberia. Um deles é Leonardo Menezes, de Porto Alegre, proprietário do site Barbadas Pelo Mundo, página que dá dicas de como viajar gastando menos. O gaúcho administra e participa de grupos de WhatsApp/Telegram que divulgam promoções relâmpagos de passagens, que, quando têm preços muito abaixo do valor normal, são conhecidas como bugs, que ocorreriam devido a supostas falhas momentâneas em sites das companhias aéreas.
Em 28 de dezembro, por volta das 11h, em um desses grupos, Menezes ficou sabendo que a Iberia estava vendendo passagens com preços muito baratos. Entrou no site oficial da companhia e, por volta das 11h15min, já tinha garantido seu bilhete. Efetuou o pagamento e recebeu a confirmação da compra, com localizador do ticket. Os preços promocionais se esgotaram em poucas horas. Dois dias depois, assim como relatam diversas pessoas, Menezes recebeu comunicado da Iberia avisando sobre o cancelamento da venda. A justificativa dada era de que houve erro nos valores envolvidos.
A companhia não divulgou quantos bilhetes foram vendidos durante esse suposto bug, mas Menezes estima que há ao menos mil clientes com passagens canceladas neste caso, com base nos relatos de grupos de mensagem instantânea em que ele participa.
A justificativa detalhada pela Iberia aos clientes era de que o preço cobrado foi de US$ 118 (cerca de R$ 660 na cotação desta segunda-feira, 3, mas que com taxas de embarque chegaria a R$ 1,1 mil), quando o valor real do trecho seria de US$ 1.180 (R$ 6.608, sem taxas). E que esse valor de US$ 118 seria três ou quatro vezes menor do que os preços mais baratos vendidos pela Iberia para a rota em questão. Na noite deste domingo (2), o site da Iberia divulgava promoções saindo do Rio para destinos europeus com valores entre US$ 450 (R$ 2.520) e US$ 840 (R$ 4.704).
Para Menezes, a justificativa da companhia é aceitável. Mas ele pondera:
— Acho a justificativa plausível. A companhia está tentando minimizar os danos que possa sofrer. O cancelamento foi em um tempo rápido. Falaram que em até 15 dias ocorreria o reembolso, mas, se demorarem, gera insegurança. Porque o pessoal pode começar a pensar que a promoção foi feita para capitalizar a empresa. Em princípio, não é o que acontecerá, segundo a companhia.
Já a advogada Renata Gomes de Albuquerque Sá, que administra uma página sobre Direito em rede social e mora no Rio de Janeiro, também teve bilhetes cancelados pela Iberia neste caso e discorda do entendimento da empresa:
— A meu ver, a justificativa não se sustenta, pois foram feitos anúncios no site da Iberia com essa tarifa, foram enviados e-mails de remarketing pela empresa para os clientes anunciando a promoção, como eu recebi, e os voos ficaram disponíveis por esse valor por muitas horas, reforçando que se tratava de uma promoção, e não de erro. Além disso, estou acostumada a viajar para a Europa e acompanho os preços de passagens. O valor anunciado não pode ser considerado irrisório como eles tentaram alegar.
Segundo a advogada, a conduta da companhia viola o direito do consumidor:
— Os artigos 30 e 31 do Código de Defesa do Consumidor exigem a veracidade das informações veiculadas pelas empresas que anunciam e fornecem produtos e serviços, vedando a publicidade enganosa. Além disso, o artigo 35 garante ao consumidor o cumprimento das ofertas anunciadas e, em caso de recusa de cumprimento de ofertas, assegura o seu cumprimento forçado ou o cancelamento do contrato, com direito à restituição imediata de valores devidamente atualizados e indenização por perdas e danos.
Renata afirma que já verificou situações em que companhias honraram bilhetes vendidos com preços de fato irrisórios:
— Por exemplo, uma promoção em que só foram cobradas as taxas de embarque em um voo de São Paulo para Manaus. Mesmo assim, a empresa honrou a venda, sem necessidade de ingresso na via judicial. Também já vi casos em que a empresa honrou tarifas de cerca de R$ 600 em voos do Brasil para os EUA e para a Europa, após pressão dos órgãos de defesa do consumidor.
Menezes também comenta que já fez ao menos 10 viagens internacionais com preços que poderiam ser considerados bugs em sites de companhias aéreas. Foi a Nova York e voltou por R$ 700, em 2019, e a Paris por R$ 900, em 2017, exemplifica ele, declarando que todas essas passagens foram honradas pelas companhias envolvidas. Em razão disso, Menezes recomenda:
— De todos os bugs que comprei, nenhum foi cancelado. Teve um caso da American Airlines que cancelou os bilhetes, mas, após a repercussão negativa na internet, as passagens foram confirmadas. Isso é comum de acontecer também e ainda pode ocorrer neste caso da Iberia, acredito. A melhor dica, nesse momento, é esperar. Costumo falar para ter calma e esperar de 15 a 20 dias para ver se o cancelamento será mantido ou não. Aí, se for mantido, cada um tem de analisar seu caso.
Segundo o defensor público estadual Rafael Pedro Magagnin, dirigente do Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas da Defensoria do RS, o Código de Defesa do Consumidor, ao tratar o cliente "como pessoa vulnerável nas relações de consumo, traz o 'princípio da vinculação contratual da oferta', que obriga os fornecedores de produtos ou serviços (no caso, a companhia aérea) a cumprir as ofertas que eles disponibilizam em seus sites, anúncios ou propagandas em geral".
— Por outro lado, tribunais entendem que em algumas situações, como no caso de erro grosseiro e, principalmente, quando o erro é rapidamente constatado e cancelado pelo fornecedor, isso pode servir como uma exceção a esse princípio, mas desde que fiquem caracterizados alguns requisitos, como o valor sendo muito abaixo daquele que normalmente é praticado para aquele serviço, a boa-fé dos consumidores ao realizarem a compra, o efetivo pagamento do valor contratado, entre outros — avalia Magagnin.
De qualquer forma, o defensor ressalta:
— Cabe salientar que, mesmo que eventualmente não seja devida a emissão do tíquete e o cumprimento da oferta pela companhia aérea, em outras ocasiões os tribunais já entenderam que seria possível a fixação de indenização por danos morais pela frustração causada ao consumidor. Diante disso, apenas diante do caso concreto é que se poderá falar em abusividade ou não na conduta do fornecedor, analisando as peculiaridades de preço, de constatação do erro, da boa-fé dos adquirentes, entre outros.
Compra por agência
A jornalista Anelise Zanoni, moradora de Canoas, na Região Metropolitana, atua na área de comunicação e turismo e administra a página Travel Terapia. Ela também comprou a passagem da Iberia em 28 de dezembro, mas por meio de uma agência de viagens online.
— Cheguei a entrar no site da Iberia e me chamou atenção porque havia um anúncio de promoção de São Paulo a Madri por cerca de R$ 1,7 mil. Então, tive certeza de que o preço era real. Simulei passagens de São Paulo a Madri, mas quando finalizava, ficava mais caro. Aí, simulei pelo site da Decolar e consegui comprar por cerca de R$ 1,3 mil. Recebi a confirmação e o localizador, que inclusive aparecia no site da Iberia. No domingo, esse localizador já não estava mais no site da Iberia. A Decolar me informou, no final da noite de domingo, que a Iberia havia cancelado a emissão, porém a agência estava vendo uma forma de resolver o problema, dando a entender que discordava da decisão da empresa aérea — relata.
Anelise conta que também já comprou passagens com preços considerados bugs. Em 2014, chegou a ir com outras 10 pessoas para Orlando, nos Estados Unidos, por cerca de R$ 200 no bilhete de ida e volta, partindo de Porto Alegre.
— O cancelamento é péssimo porque, de alguma forma, fomos enganados. É um preço muito baixo, mas não é absurdo, como a companhia alega. Tanto que havia essa promoção de R$ 1,7 mil na capa do site. É muito ruim para o cliente e para a empresa aérea. É um desgaste que eles poderiam ter revertido a favor deles, num momento em que o setor do turismo precisa de pessoas viajando. O setor foi devastado na pandemia. Seria importante, neste momento. Agora, vão ter de resolver esse problema — argumenta.
Assim como Anelise, outras pessoas relataram, em rede social, que viram no site da Iberia anúncios de promoção de passagem de ida e volta do Brasil à Europa por cerca de R$ 1,7 mil.
O que diz a Iberia
A companhia aérea de origem espanhola foi contatada pelo e-mail indicado para o atendimento à imprensa e por meio de redes sociais, mas não havia respondido aos questionamentos até a publicação desta reportagem. O espaço continua aberto para manifestação.
Como solucionar a questão?
Além de tentar resolver o problema diretamente com a companhia, clientes podem efetuar uma reclamação formal na plataforma Consumidor.Gov (conforme indicação da Anac) e, caso uma solução não seja acordada, essa mesma contestação pode servir de base para o cliente abrir, de forma gratuita e sem necessidade de contratação de advogado, uma ação no Juizado Especial Cível (JEC), com limite para causas inferiores a 20 salários mínimos, hoje equivalente a cerca de R$ 24 mil. Além disso, segundo o site do Tribunal de Justiça do RS, as causas do JEC podem ter valor ampliado de até 40 salários mínimos, "sendo que a partir de 20 salários é preciso contratar advogado ou buscar a Defensoria Pública".
O que diz o Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do RS
Os consumidores que se sentirem lesados poderão procurar a Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas, enviando um e-mail para nudecontu@defensoria.rs.def.br, a fim de que possa ser analisada cada uma das situações individuais e depois ser verificada a necessidade de atuação judicial ou extrajudicial, individual ou coletiva, para reparação de eventual abuso.
O que diz a Anac
“Nas situações em que entendam que tenha ocorrido descumprimento do contrato de transporte aéreo, os passageiros são orientados a primeiramente procurar os canais de atendimento eletrônico, telefônico ou presencial da própria empresa aérea para resolução. Caso não fique satisfeito com o atendimento ou a solução apresentada pela empresa aérea em seus canais próprios, recomenda-se que o passageiro registre uma reclamação na plataforma Consumidor.gov.br.
As manifestações registradas nesse canal são analisadas pela agência em âmbito coletivo para identificar os principais problemas enfrentados pelos passageiros e assim direcionar a regulação e a fiscalização das Condições Gerais de Transporte Aéreo (Resolução Anac nº 400/2016) e da acessibilidade (Resolução nº 280/2013).
É importante destacar que eventuais indenizações por danos morais e/ou materiais decorrentes de possível descumprimento do contrato de transporte aéreo devem ser realizadas perante os órgãos de defesa do consumidor."