Corpo médio e nariz elegante. Notas delicadas de frutas vermelhas e especiarias. Taninos que conferem estrutura e complexidade. Final longo e persistente. Nem de longe, a descrição de vinhos fazia parte da minha rotina. Mas o convite foi aceito. Mesmo sendo aquela que prefere lúpulos acentuados, maltes torrados e colarinho cremoso, não ousaria optar pela cerveja em um dos melhores terroirs do Brasil.
Dos conhecidos caminhos do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, à área rural do novíssimo município de Pinto Bandeira, passando por cachoeiras, pores do sol e até por uma sessão de cinema entre os parreirais, foram quatro dias de uma nova serra gaúcha para mim. Com belas paisagens, farta gastronomia e, claro, uma litragem significativa de vinhos e espumantes que colocam o RS no rol dos melhores produtores do mundo.
Esta introdução ao universo dos vinhos veio decidida a colocar meu paladar cervejeiro à prova. Pude acompanhar o manejo das vinhas com a tesoura de poda nas mãos e o agrônomo do lado. Caminhar pelos vinhedos na companhia de um vinicultor com mais de 50 anos de lida. Assistir, de dentro das caves, ao trabalho de enólogos e sommeliers e degustar amostras até mesmo direto de barricas. Tudo isso de um produto que deve entrar para história do vinho brasileiro.
– Estamos falando de uma safra que está entre as três melhores do Brasil. O tempo colaborou, a tecnologia nas vinícolas ajudou e a maturidade de nossos enólogos transformou a uva em vinho de altíssima qualidade – anunciou o presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Edegar Scortegagna, na 26ª Avalição Nacional de Vinhos, ocorrida no final de setembro, em Bento Gonçalves.
Convido o leitor a acompanhar as aventuras desta cervejeira assumida pelo inebriante reino da bebida de Baco.
Oásis da espumante
Com menos de 3 mil habitantes, a recém-emancipada Pinto Bandeira vale entrar no radar turístico dos gaúchos. A duas horas da Capital, o município, que até 2012 era um distrito de Bento Gonçalves, tem opções gastronômicas e de enoturismo de tirar o fôlego. Quando eu digo “tirar o fôlego”, é para valer.
Passeios de bike de até 10 quilômetros de estrada de chão, percurso de quadriciclo barranco acima, entre os vinhedos, e, para arrebatar, um banho de cachoeira. Está bom para você? Pois fica ainda melhor com os vinhos e os espumantes produzidos na região. Aliás, a prosperidade das terras de Pinto Bandeira é tamanha que, em breve, deve ser lançada a D.O. (destino de origem) Altos de Pinto Bandeira. Trata-se da mais rigorosa chancela de espumantes não só do Brasil, mas de todo o Hemisfério Sul.
Um exemplo do selo é o do Vale dos Vinhedos, considerada a primeira D.O. de vinhos do Brasil. Além de o documento definir a legislação para a fabricação de vinhos naquele local, ele informa o cliente sobre a procedência do vinho e da uva já no rótulo da garrafa. É o caso das bebidas feitas pela Pizzato Vinhas e Vinhos. Fundada em 1968, a vinícola ostenta merlots premiados, sendo o DNA 99 o seu ícone, classificado pela ExpoVinis de 2011 como o melhor tinto do país.
Voltando às terras afortunadas de Pinto Bandeira: foi lá que Mario Geisse, na época um supervisor técnico da Chandon, descobriu o oásis dos espumantes. A história data do idos de 1970. Com faro de especialista, ao chegar no Estado, o chileno deparou com clima e topografia ideais ao manejo de uvas para a produção da bebida. Isso tudo em uma microrregião que até então era dominada por cooperativas e vinhos de mesa.
Segundo Daniel Geisse, filho de Mario e, atualmente, responsável pelas operações da vinícola ao lado dos irmãos Ignácio e Rodrigo, o sonho do pai saiu do papel em uma negociação um tanto curiosa: 24 hectares de terra trocados por dois caminhões Mercedes.
— Quando ele (Mario) finalmente achou o lugar com o terreno ideal, precisou convencer uma família a vender a sua propriedade. O casal era produtor, mas ele descobriu que os dois filhos, ainda adolescentes, não queriam seguir o negócio da terra. O sonho deles era ser caminhoneiros. Então, o pai, muito esperto, foi no banco e, com o aval da Chadon, abriu um crediário para a compra dos caminhões — conta Daniel.
Assim, estava feito o negócio. Operando totalmente de forma artesanal, quase como um hobby, a vinícola lançou o seu primeiro exemplar em 1978. Aos poucos, atendendo a pedidos de amigos e amigos de amigos, a produção foi ampliada, e a qualidade do espumante feito em terras gaúchas começou a se popularizar.
— As pessoas não acreditavam que se podia fazer espumante de qualidade no Brasil. Em uma viagem, meu padrinho, que é argentino, acabou levando uma garrafa para Buenos Aires, em um evento do ramo. Foi um sucesso — diz Daniel.
Completando 37 anos em 2018, a vinícola Geisse prima pela qualidade e não quantidade. Com 35 hectares de plantio, anualmente são produzidas 340 mil garrafas dividas em três coleções. O ícone, sem dúvida, é o Espumante Cave Geisse Brut 2002, com blend de chardonnay (70%) e pinot noir (30%). Com mais de 14 anos de guarda, um exemplar deste espumante foi degustado por Jancis Robinson, apenas uma das maiores críticas de vinho do mundo: "Um dos mais impressionantes espumantes que me chegaram em muito tempo", pontuou a britânica. Um Geisse ainda figurou na seleta lista em que Jancis elencou os 18 rótulos que iriam moldar o futuro do vinho. O espumante gaúcho foi o único brasileiro da relação.
A experiência que vivi em Pinto Bandeira foi realmente inspiradora. Na cave, era como se estivesse em uma aula de biologia: “leveduras autótonas”, “aceleração da fotossíntese”, “fermentação espontânea” e por aí vai. No pátio da propriedade, pude degustar alguns rótulos harmonizados com queijos, embutidos, castanhas, tâmaras, além das tradicionais e saborosas empanadas chilenas. Um ambiente agradabilíssimo, onde ocorre o lounge Cave Geisse, aberto ao público em feriados e finais de semana.
Com a barriga cheia, ainda desbravei aqueles montes de quadriciclo, até chegar a uma pequena queda d’água. Ali, dá-se o que os Geisse chamam de degustação silenciosa, quando o visitante pode apreciar as bebidas da casa em um ambiente tranquilo, rodeado de natureza.
Na terra dos vinhos, uma revelação feita por Daniel me deixou atônita.
– O brasileiro ainda não descobriu, mas o espumante é a bebida ideal para o churrasco – disse ele.
Espumantes secos, em especial os brut, cortam a gordura e preparam o paladar com acidez e refrescância. A bebida apronta a boca para receber a próxima carne – pude comprovar dias depois, na estação experimental da Cooperativa Aurora em Pinto Bandeira. É onde enólogos da casa testam novas tecnologias no cultivo.
Há alguns anos, a cooperativa com sede em Bento Gonçalves – que reúne 1,1 mil famílias e é popular pelos vinhos de mesa Sangue de Boi e Country Wine, pela saudosa Keep Cooler e pelos sucos de uva – começou a produzir rótulos no local, um chardonnay, um pinot noir e o hit, o espumante Aurora Pinto Bandeira Extra Brut. Provei esta delícia fresca e com aroma de frutas secas, advindo dos 24 meses sobre as borras, entre garfadas de costela e picanha. Recomendo!
Boutique nos Altos Montes
Minha familiaridade com o universo dos vinhos é tamanha que eu nem sonhava com existência de vinícolas boutiques. Pois elas existem, e a Luiz Argenta Vinhos Finos é uma delas. Localizada em uma belíssima propriedade que pertencia à antiga Granja União, em Flores da Cunha, fica a apenas 150 quilômetros de Porto Alegre.
A região tem o selo de Indicação Geográfica Altos Montes, uma alusão à geografia do lugar, cujos morros chegam a 885 metros de altitude. O terroir é considerado um dos melhores do país, devido a sua localização, topografia e insolação. São 55 hectares de cultivo de 17 castas de uvas viníferas, e uma decoração com acabamentos em vidro, pedras luxuosas e iluminação indireta. Deu para entender o “boutique”?
Mas o termo não tem só a ver com a atmosfera sofisticada do lugar. Segundo Edegar Scortegagna, que, além de presidente da Associação Brasileira de Enologia, é enólogo da casa, a denominação é conferida a vinícolas que cultivam suas uvas e produzem seus próprios vinhos, cuja tiragem é relativamente pequena.
A Luiz Argenta produz 200 mil garrafas de vinhos e espumantes por ano. E que garrafas! Além de conterem um líquido precioso – o chardonnay oito anos foi eleito o melhor branco brasileiro pelo último guia Descorchados –, as botelhas (patenteadas e importadas da Itália) são peças de decoração. Uma das responsáveis pelo marketing da vinícola, Daiane Argenta, filha de Deunir, um dos proprietários, conta que já viu gente com pena de estourar a rolha:
– Recebemos retorno de muitos clientes que adoraram as garrafas e as usam como enfeite em casa, sem nem abrir.
Os 180 mil litros produzidos anualmente são fracionados em três linhas. A Luiz Argenta Cave, com vinhos ao estilo Gran Reserva, uma linha de vinhos tradicionais, Reserva, denominada LA Clássico, e outra de vinhos frescos e frutados, chamada de LA Jovem. Entre mais de 15 rótulos, o ícone é o Merlot Uvas Desidratadas, elaborado seguindo o estilo dos vinhos amarones.
Confesso que não consigo lembrar quantos rótulos degustei na visita à Luiz Argenta, mas recordo bem que, para cada taça, houve uma harmonização com a gastronomia do Clô Restaurante, que fica na propriedade. Se o nome da vinícola é uma homenagem ao patriarca, Luiz – pai de Deunir e Neco –, desta vez, a referência é à matriarca Argenta, dona Clorinda, entusiasta da mesa farta e do cálice cheio.
Pelo avançado da leitura, acredito que o leitor já não imagine que o restaurante seria uma cantina clássica, aos moldes italianos, à base de generosas e molhadas porções de carboidrato, certo? Seguindo o híbrido que permeia todo o empreendimento, Clô tem sabor de memória afetiva com empratamento contemporâneo. Quem assina a cozinha é Wander Besolin, que está concluindo o curso de Gastronomia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Em Flores da Cunha, a escola leva o selo ICIF, que significa Italian Culinary Institute for Foreigners, em parceria com uma escola de Itália.
Biodinâmica nos vinhedos
A pouco mais de um quilômetro da propriedade dos Geisse – cujo percurso fiz de bicicleta –, também no terroir privilegiado de Pinto Bandeira, está a vinícola Don Giovanni, que tem tudo para ser tornar uma das referências em produção de vinhos biodinâmicos no país.
Com uma tradição que data de 1920, nitidamente conservada nas construções, o empreendimento é administrado pela quarta geração da família, que investe forte em sustentabilidade. Desde 2014, são realizados testes de manejo biodinâmico nos vinhedos, utilizando ferramentas mais sutis para restaurar a energia e o equilíbrio do ecossistema, como a aplicação de compostos orgânicos no solo e, ainda, levando-se em consideração movimentações energéticas, tais como as da astrologia e da astrofísica.
– A biodinâmica trabalha com os quatro elementos: terra, água, ar e calor.
A terra influencia na raiz, a água na folha, a luz na flor e o calor no fruto. Quando a lua está na constelação de Leão, um signo de fogo, por exemplo, este dia vai influenciar no fruto. Ou seja, é bom para colher a uva– ilustra o enólogo da casa (e leonino) Maciel Ampese.
Em busca do “melhor vinho possível, com a menor intervenção possível” – usando as palavras do gerente comercial, Daniel Panizzi –, são cultivadas e preparadas algumas plantas medicinais que enriquecem os vinhedos. A temida urtiga, por exemplo, combate o pulgão. Já a cavalinha é utilizada para evitar fungos, e o mil-folhas, para potencializar o potássio e o enxofre.
– As mudanças são visíveis. O solo queimado dos herbicidas contrasta com o tapete verde de hoje. A horta está mais viva. Sem falar da biodiversidade de animais, como pássaros – celebra Panizzi.
Hoje, são 50 hectares de um complexo que reúne vinícola, pousada e restaurante, sendo 14 hectares de vinhedos, na sua maioria de pinot noir e chardonnay. A produção anual da Don Giovanni gira em torno de 120 mil litros.
O espumante é a principal obra da casa, produzido pelo método tradicional, o champenoise, com diferentes tempos de maturação: 12, 18, 24, 36 e 70 meses. A empresa ainda fabrica um brandy, destilado de vinho com alta graduação alcoólica. A bebida é envelhecida em barris de carvalho por, no mínimo, 12 anos.
Coisa de cinema
Quando eu digo que estavam decididos a me fazer largar da “ceva”, não é exagero! Depois de o espumante tomar o lugar dela no churrasco, foi a vez das borbulhas encontrarem com o cinema e a pipoca.
Com mais de cem anos de história e o peso de ter fabricado o primeiro champagna brasileiro lá em 1913, a Peterlongo resolveu se reinventar. Desde 2015, a vinícola de Garibaldi investe em infraestrutura e enoturismo. Um dos projetos mais legais dessa nova era, o Wine Movie, já conquistou seu público. Amantes do cinema se reúnem para uma sessão a céu aberto em meio aos parreirais. A experiência é regada a espumantes da casa, é claro, e food trucks, que servem pipoca e lanches (leia mais sobre a próxima edição na página 7).
Além das atrações turísticas, a Peterlongo comemora o sucesso de uma parceria salutar com o winemaker Pascal Marty. O francês, responsável pela elaboração de rótulos mundialmente consagrados como o chileno Almaviva e o californiano Opus One, tem a missão de revitalizar os produtos de todas as linhas da vinícola. O Peterlongo Elegance Nature é um deles. Com blend de chardonnay e pinot noir e maturação de 24 meses, o espumante já conquistou medalha de bronze no Decanter World Wine Awards, de 2017, e figurou no Top Ten da Expovinis, realizada no mesmo ano.