Os gaúchos Luciano Ferreira e Caína Giordani venderam tudo para se jogar em uma viagem de carro pelas Américas. Depois de mais de um ano de estrada, Caína compartilha com a gente os momentos mágicos dessa aventura, mas também as angústias que quase a fizeram voltar para casa antes do tempo.
Por Caína Giordani
Em janeiro, completamos um ano de vida nômade, viajando de carro e acampando no projeto Por la Carretera. Parece que foi ontem que saímos da casa dos nossos amigos em San Clemente, na Califórnia, para cruzar a fronteira com o México e iniciar esta jornada. É difícil explicar os aprendizados, os desafios, eleger melhores momentos ou lugares — tudo vem tão misturado!
Ao sairmos do Brasil, o plano era viajar um ano, da Califórnia à Patagônia. E só. (Já parecia muito.) Mas já estamos há um ano e sete meses na estrada e recém cruzamos a linha do Equador. Falta um pouco mais da metade do caminho, se o medirmos em quilômetros. Só que uma road trip não se mede em quilômetros. O nosso tempo não está vinculado à distância, mas ao "desfrutar" que cada local nos oferece. E isso envolve tantos aspectos sutis, como pessoas, previsão do tempo, custo, adaptação, humor, paisagem, camping, mosquitos...
Nossa "caixinha" também é determinante para nosso tempo na estrada. Vendemos o que tínhamos no Brasil para financiar essa experiência — quando acabar o dinheiro, acaba a viagem. Mesmo assim, não somos mesquinhos conosco. Sabemos que, para a jornada valer a pena, desfrutá-la com prazer é essencial. Assim, nos damos dias de descanso na barraca e jantarzinhos fora de vez em quando, sempre equilibrando os "luxos" para agradar hora um, hora outro _ sem abusar muito do nosso cofrinho e sabendo que, em último caso, vendemos o carro e voltamos para casa mais cedo.
O bom é que essa vida de viajantes é simples: não é preciso tanto requinte para nos fazer feliz. Só se expor a ela tem nos acrescentado muito mais que milhas dirigidas e carimbos no passaporte.
O Lú desenvolveu primorosamente sua arte e técnica fotográfica, leu seu recorde de livros no ano, aprendeu a abandonar um livro ruim, surfou ondas incríveis e outras nem tanto, teve sua resistência às águas geladas testadas ao limite, realizou sonhos de criança ao sair desbravando florestas com amigos e sua prancha debaixo do braço atrás de ondas perfeitas, conheceu alguns "picos secretos" de surfe por onde passamos, recebeu visita de um de seus melhores amigos e fez muitos novos, pescou peixe para nosso jantar, descobriu ondas onde nem imaginava e surfou sozinho ondas lindas.
Fez churrasco gaúcho no Canadá, escalou vulcão a contragosto, foi borracheiro, mecânico, cozinheiro, conselheiro, fotógrafo e bon vivant. Viveu descalço quase 100% desse ano, conectou-se com a natureza, viu céus recheados de estrelas e muitas estrelas cadentes, viveu muitos amanheceres e pores do sol dentro d'água.
Eu aprendi a falar inglês, melhorei meu espanhol significativamente, virei fotógrafa de surfe, aprendi a acampar e fazer fogo, li muitos livros e estou aprendendo a não abandonar projetos por circunstâncias ao redor. Fiz curso de formação para professora de yoga na Costa Rica, negociei o pagamento em troca de um projeto de arquitetura e, assim, aprofundei-me nessa prática e filosofia que tanto admiro.
Surfei ondas pequeninas sem quase ninguém no mar e brinquei com o pranchão azul nas espumas; comi lagosta, pato e bisão (nem sabia o que era) pela primeira vez e também vi nevar pela primeira vez. Vivi 80% do ano de pé descalço e a céu aberto, vi diversos animais selvagens livres e belos em seus hábitats naturais, desfrutei do nascer do sol e das quietudes da manhã, adaptei-me ao horário solar, às mudanças de clima, às dificuldades da chuva forte e dos ventos das tempestades tropicais.
Aprendi mais sobre mim do que poderia desejar. Senti saudade profunda de ter um lar e meu cantinho, fiquei triste e me deixei levar por essa tristeza, quase desisti de seguir viagem por isso e por ansiedades com o futuro. Aprendi a buscar a paz e equilíbrio dentro de mim. Abri meu coração para novas amizades que levarei para a vida.
Superei timidez, medos, ansiedade e uma leve depressão, aprendi a viver com muito pouco, sem paredes, sem teto, sem privacidade — a não precisar de um banheiro e a dar muito valor a um. Virei cabeleireira, manicure, depiladora, cozinheira, fotógrafa, surfista de marola e professora. E, principalmente, parei de tentar preencher o tempo e prever o futuro, e aprendi que preciso é estar no presente e desfrutá-lo.
Foram tantas coisas que a vida na estrada nos apresentou e presenteou nesse maravilhoso ano de alma exposta às experiências, de uma vida à flor da pele! Uma das que posso listar como aprendizado maior para nós dois é acreditar nas nossas escolhas. Confiar no caminho que a estrada nos levar, estar aberto para o que a vida quiser nos mostrar.
A cada decisão, da menor a maior, quando a gente se abriu para o que fosse vir foi sempre melhor que qualquer planejamento. Melhores lugares, pessoas, amizades, experiências. Não se prender a planos ou lugares "obrigatórios" a conhecer, não ficar tão restrito ao orçamento ou até a uma previsão de retorno ao Brasil, mas ser maleável, adaptável, mutantes!
Atualmente, oscilamos entre o desejo de chegar e rever quem amamos com o prazer dessa vida na estrada tão livre e surpreendente. Que nossa querida América do Sul nos preencha de ótimos momentos ao longo do que ainda resta de nossa jornada.
Quem são
Caína Giordani, 35 anos, é de Porto Alegre. Formada em Arquitetura, trabalhava com uma marca própria de roupas femininas
Luciano Ferreira, 44 anos, também nasceu em Porto Alegre e era proprietário de uma imobiliária em Florianópolis
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