Em The Sims, é possível ser um cientista maluco, alienígena, político corrupto, celebridade ricaça ou garçom com contas a pagar — a variedade de personagens sempre foi um atrativo do jogo, cuja diversão é simular vidas em ambiente eletrônico. Com as infinitas possibilidades, a franquia lançada em 2000 se tornou um terreno fértil para diversidade, dando representação a pessoas LGBT+.
Ciente de que está na contramão da indústria de games, um espaço historicamente hostil a minorias, a Electronic Arts (EA), distribuidora do jogo, turbinou as ferramentas de representatividade. Uma das diversões do game é poder criar o personagem do zero — e fica claro como diferentes tipos de pessoas podem se sentir abraçadas. Lançado em 2014, The Sims 4 disponibiliza cabelos diferentes, roupas sem gênero, vozes graves e agudas, uso de pronomes neutros, gravidez em homens e a possibilidade de mulheres fazerem xixi em pé.
Em julho, a EA deu um novo passo e possibilitou aos jogadores definir a orientação sexual dos seus personagens, algo importante para construir relacionamentos na narrativa. Para a produtora, quanto mais opções, melhor.
— Queremos que nosso sistema capture o maior número possível de histórias — explica ao Estadão Jessica Croft, desenvolvedora do jogo responsável por coordenar a ferramenta de orientação sexual.
— Houve um avanço em termos de representação, e estamos nos esforçando para estar à frente dessas demandas. E esse é o espírito dos tempos atuais — diz.
É um posicionamento bastante bem-vindo.
— O movimento do The Sims é significativo para um jogo desse tamanho — aponta Carolina Caravana, vice-presidente da Associação Brasileira de Games (Abragames) e membro do conselho de diversidade da organização.
— A franquia é uma das expoentes no posicionamento pró-diversidade e no caminho para trazer mais representação e abrangência — acrescenta.
Preconceito
A bandeira, claro, resulta também em situações difíceis para a franquia. Em fevereiro, a EA cancelou o início das vendas na Rússia do pacote de expansão The Sims 4: Histórias de Casamento. Isso porque o game trazia uma capa com duas mulheres de braços dados sob um arco de flores, o que desrespeita a legislação do país contra "propaganda gay". Dias mais tarde, após a comunidade de fãs se queixar da decisão, a distribuidora decidiu lançar o game por lá, mas com outra capa.
— Sabemos que nem todos são abertos e receptivos. Mas não queremos desenhar esses recursos a partir do medo — diz Jessica.
A desenvolvedora garante que o estúdio trabalha em mais novidades nesse sentido, mas não dá detalhes.
História
O espaço para diversidade em The Sims é uma construção de mais de duas décadas — o primeiro sinal de apoio à população LGBT+ foi em 1999, um ano antes do lançamento do jogo.
Na época, durante a Electronic Entertainment Expo (E3), principal evento de games no mundo, uma prévia do game exibiu de forma não planejada um beijo lésbico, o que causou enorme barulho. Durante a demonstração, a inteligência artificial do game permitiu o beijo entre duas personagens, sem o aval da chefia da obra. Mesmo assim, a EA decidiu seguir com a ideia adiante, sem alterar o código do game.
Assim, The Sims abriu as portas para que muitos jogadores vivessem uma realidade "fora do armário" no mundo virtual.
— Era um mundo paralelo para mim — conta o diretor de arte Elvis Couto, 31, criador do portal Cidade dos Sims, dedicado a notícias sobre a franquia:
— O jogo era um escape — diz ele, que é gay e cita episódios em que não se sentia confortável para falar da própria orientação sexual com amigos e parentes durante a juventude.
Segundo a pesquisadora Beatriz Blanco, membro do laboratório Cultpop, há também outro motivo para esse público mais diverso: a plataforma.
No início dos anos 2000, a indústria focava a venda de consoles (como PlayStation e GameBoy) no público masculino, enquanto jogos para PCs dedicavam-se a um público mais infantil ou feminino.
— Com The Sims, isso formou uma comunidade não tão centrada na masculinidade heterossexual e cisgênero como em outros nichos — explica.
Assim, os fãs de The Sims acreditam que podem estar imunes ao preconceito no ambiente digital.
— Não tem como ser um jogador preconceituoso de The Sims. A comunidade se defende — diz Couto.
Influência
A influência de The Sims no resto da indústria em termos de representatividade se tornou inevitável. Os últimos anos foram marcados por avanços, com diferentes títulos inserindo personagens de origens e cores variadas.
O maior deles, talvez, seja The Last of Us: parte 2, um dos principais games dos últimos anos. Apresentado para PlayStation 4, a história traz Ellie acompanhada da namorada, Dina, durante a busca da protagonista por vingança.
O valor da franquia de simulação de vida, no entanto, é histórico.
— Sempre ouço de jogadores mais novos que dizem que The Sims foi a única mídia onde se viram representados. E isso é uma história poderosa — diz a Jessica.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.