Por Lucilene Silva
Pesquisadora da cultura infantil, mestre e doutora em Música pela Unicamp
Brincar é milenar, universal e constitui representações de diferentes aspectos das sociedades nas quais se desenvolveram ou se integraram. A cultura da infância corresponde ao universo dos brinquedos e das brincadeiras que acompanham a criança em todo o seu processo de desenvolvimento. Traz na sua essência os gestos, a poesia, a história e a música de cada lugar, que possui paisagens e características próprias, onde o ser humano traça sua maneira de se relacionar com elas. Algumas brincadeiras são cíclicas, e tais ciclos podem variar de um lugar para outro, relacionando-se com estações do ano, períodos de safras, férias escolares, tipos de vegetações, entre outras.
O repertório das brincadeiras da infância contempla acalantos, brincos, histórias, adivinhas, trava línguas, quadrinhas, fórmulas de escolha, brincadeiras de roda, amarelinhas, jogos, pegadores, brincadeiras com bola, corda, elástico, mão, pedra, o objeto brinquedo. Cada uma dessas brincadeiras traz a palavra aliada ao gesto. Movimento e desafio são a tônica, e o corpo traduz a capacidade de a criança experimentar, inventar, arriscar e se expressar livremente. Da mesma forma que desafia o corpo na expectativa de atingir seus limites, o faz com as palavras, que se tornam verdadeiros brinquedos. A riqueza da língua materna, a musicalidade da voz falada, a rima, a métrica e poesia, a criatividade e inventividade das crianças, somadas a uma infinidade de movimentos corporais, compõem a diversidade do repertório, que tem o cotidiano como tema recorrente.
Sua localização no tempo e no espaço apontam para história, geografia e costumes do lugar de origem. Nas variantes espalhadas por todo o Brasil, encontramos sinais do rural, do urbano e de particularidades dessa raiz, seja no vocabulário, na paisagem, na vegetação, nos personagens, na alimentação, no trabalho, nas crenças, nas superstições, nas festas e nos gêneros musicais predominantes em cada localidade.
O repertório da cultura da infância brasileira tem sua base herdada dos portugueses e a esse se agregaram elementos africanos e ameríndios. Recebeu também influência de outros povos pelos grandes fluxos imigratórios que aqui ocorreram. Elementos da cultura infantil italiana, alemã, espanhola, francesa, inglesa, norte-americana, japonesa, judaica, boliviana, chilena, entre outras, se misturaram à nossa, tornando-a ainda mais rica e diversa.
De linguagem simples, o sonoro tem privilégios com relação à gramática e ao significado das palavras. Assim, são infinitos os exemplos intraduzíveis e os ajustes linguísticos de sílabas e palavras para que caibam dentro da rima e métrica. São riquíssimas as soluções encontradas pelas crianças para substituir os termos incompreendidos, ou que não fazem parte do seu vocabulário. Esses termos, às vezes sem tradução para o adulto, têm relação direta com os sons do cotidiano.
Mnemonias, réplicas, ditos, fórmulas de terminação de histórias, fórmulas de escolha, trava línguas, adivinhas e quadrinhas são formas de as crianças brincarem com as palavras. De maneira muito divertida e criativa, elas brincam com nomes, números, cores, dias, meses; tiram a sorte, falam de amor, da natureza, do mundo, das pessoas. Desafiam a língua, como desafiam o próprio corpo na brincadeira.
A poética da infância traz na sua essência simplicidade, verdade, pureza, alegria, criatividade e singeleza da criança. Predicados que também fazem parte da essência do povo e da cultura popular brasileira. Neste momento do mundo em que as telas invadiram nossas vidas e que as crianças estão sendo privadas de brincar presencialmente juntas, as brincadeiras com as palavras tornaram-se grandes aliadas para continuarmos brincando com as crianças, mesmo que de longe. Um exemplo são as mais recentes publicações do projeto Luzeirim Poético: Adivinha quem É – Pássaros em Cordel, na qual, brincando com as palavras, Amanda Senna nos ensina sobre os pássaros brasileiros; e Muitos Mundos em um Só, quadrinhas ilustradas de Carol Senna nas quais o personagem viaja observando a diversidade e contempla a sabedoria da empatia.
É uma ave popular
O seu canto eu já ouvi...
Tem a barriga amarela
E o bico preto, que eu vi.
Canta o seu próprio nome
Esse é o...?
(Resposta: Bem-te-vi)