Game eletrônico em que o jogador cria um mundo próprio e encara a missão de sobreviver nele, Minecraft é o jogo mais vendido de todos os tempos. Entre as mais de 200 milhões de pessoas que se renderam aos desafios criados por um programador sueco em 2009, está a caxiense Júlia Batista, de seis anos, que curte tanto jogar quanto assistir conteúdos a respeito na internet (o youtuber Felipe Neto é um dos grandes divulgadores do game no Brasil). Embora a mãe, Camila Batista, 29, brinque que nunca conseguiu entender o jogo, vendo que a filha se sente confortável em frente à tela não viu problemas em deixá-la passar mais tempo no computador durante a pandemia.
A alteração drástica na rotina, no entanto, provocou mudanças no comportamento da menina. Privada de outras formas de lazer, como a bicicleta e o futebol, e do contato com os colegas na escola, Júlia passou a se mostrar mais irritada e desafiadora. Foi então que a mãe a levou pela primeira vez para a psicoterapia. Por ter na família o exemplo de um sobrinho de 12 anos que convive com problemas provocados pelo excesso de videogame, Camila e o marido, Gilberto, sempre regraram o tempo de exposição da filha às telas, que não ultrapassa 1h30min por dia. A exceção aberta na pandemia foi um dos fatores que a tornaram mais estressada.
– Embora nossa visão como pais é de que a tecnologia faz bem para a Júlia, sempre fui rígida na questão do tempo em frente à tela. Mas como a pandemia mudou toda a vida dela, resolvi ceder um pouco mais. Só que o resultado não foi bom. Ela passou a se tornar irritada, frustrada... nada estava bom – conta Camila.
Como se fosse em Minecraft, a geração nascida com acesso facilitado aos dispositivos eletrônicos, da qual Júlia faz parte, tem o desafio de não fazer daquilo que seria sua maior vantagem um grave risco à saúde. Alterações súbitas no comportamento são o primeiro indício a alertar para um dos problemas que mais assustam profissionais dedicados à infância, seja pela saúde ou pela educação: o uso excessivo de telas.
– A exposição excessiva às telas pode influenciar no desenvolvimento cerebral. O cérebro é um órgão que tem características muito peculiares. O seu desenvolvimento, suas conexões e o seu funcionamento são determinados pelas experiências que vivemos ao longo de toda a vida. Dependendo das nossas vivências, das relações sociais que estabelecemos e dos desafios que enfrentamos, o cérebro vai se especializando em algumas áreas, fortalecendo algumas conexões e reduzindo outras. O tempo gasto em frente às telas para fins recreativos pode atrasar a maturação, tanto anatômica quanto funcional, do cérebro – explica a psiquiatra especialista em infância e adolescência Jordana Tonize Tedesco.
A especialista acrescenta que a infância é uma fase determinante para a aquisição de habilidades cognitivas, emocionais e sociais para encarar a vida adulta:
– As experiências infantis interferem diretamente no desenvolvimento cerebral e, consequentemente, no desenvolvimento psíquico e emocional das crianças e adolescentes. Uma melhor adaptação do indivíduo adulto às adversidades e uma satisfatória saúde mental, certamente é reflexo de uma aquisição de habilidades na faixa etária adequada.
RECOMPENSA POR OBEDIÊNCIA
Na casa de Camila e Gilberto, a solução encontrada através da psicoterapia foi usar o gosto da filha pelos eletrônicos como recompensa por bom comportamento: para mergulhar no mundo virtual, só após a menina ter cumprido suas tarefas do mundo real. A psicóloga Tassia Cervo, que deu alta para Júlia após três meses, comenta que casos como o da menina são corriqueiros na clínica. Tassia destaca que o erro dos pais é achar que o eletrônico, no caso o videogame, pode ser uma “babá” a partir do momento em que a criança passa mais tempo em casa. A psicóloga elogia casais que identificam e atacam rapidamente o problema:
– Quem não precisa da sua rotina organizada? As crianças precisam ainda mais, pois não têm a mesma capacidade de discernimento que os adultos. O uso de eletrônicos precisa ser parte de uma rotina que inclui tarefas escolares e domésticas, tempo com os pais e atividades de lazer. No caso da Júlia, o eletrônico deixou de estar disponível o tempo todo e entrou como uma recompensa por comportamento obediente.
Aliviada por ter conseguido contornar a situação, a mãe não vê a hora que a pandemia passe e a filha possa voltar a diversificar os momentos de lazer, deixando um pouco de lado o game preferido:
– A Júlia sempre foi extremamente ativa, tanto para brincar quanto para socializar. Se a gente não morasse em apartamento acho que ela seria daquelas crianças que a mãe tem que buscar na rua todo dia. Acho que por estar privada disso é que ela sente tanto esse momento e a gente acaba sentindo por ela também.
Dependência afeta corpo e mente
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda limitar o uso de telas para crianças entre 2 a 5 anos em uma hora por dia; entre 6 e 10 anos, são recomendadas duas horas. E para os mais velhos, a recomendação é de três horas diárias. Uma rotina que extrapole esses limites pode ser a porta de entrada para a dependência em eletrônicos, mal que atinge cerca de 65% das crianças do mundo todo, de acordo com um estudo indiano que teve alta repercussão no segundo semestre do ano passado.
A esse abuso de telas estão associados diversos transtornos físicos e mentais, conforme explica a pediatra Mara Mendes. Entre os principais, a médica elenca transtorno de déficit de atenção, problemas auditivos e visuais, problemas de coluna e tendinite, sedentarismo e obesidade, isolamento social, agressividade, transtornos alimentares e de autoimagem, além de ansiedade, irritabilidade e depressão.
– As famílias precisam assumir essa responsabilidade e monitorar o tempo gasto pelos seus filhos em frente às telas. Vejo muitas crianças que recebem comida na boca sem tirar os olhos do celular, como se fossem pequenos robôs – comenta.
Mara alerta ainda para os riscos relacionados à qualidade do sono, provocados principalmente pelo uso de telas à noite, antes de dormir, como uma questão que preocupa desde a infância até a adolescência.
– Dormir menos de oito horas por dia nesta fase da vida em que o cérebro ainda está em desenvolvimento pode acarretar baixo rendimento escolar, alterações de comportamento e transtornos de humor, levando até à depressão. Problemas oftalmológicos também estão ligados a isso. A questão mágica aqui é saber dar limite.
Tempo e espaço para o olho no olho
Além de influenciar no desenvolvimento, o uso exagerado de telas também pode prejudicar a relação entre pais e filhos, criando barreiras para que a criança se expresse e manifeste suas emoções. A psicopedagoga clínica Margarete Pretto Danieli observa que é fundamental reservar horários do dia para que todos na casa tirem os olhos do celular ou da televisão e convivam olhando no olho. E sem esquecer que as crianças também aprendem por imitação:
– O lugar onde as refeições são feitas, por exemplo, deve ser sagrado. Elas são um momento essencial para que os pais deem atenção à criança: auxiliem na alimentação e garantam um cardápio saudável, além de socializar com ela, estimular que ela conte como foi o seu dia na escola, algo engraçado. Isso ajuda a criar confiança e deixá-la mais à vontade para se expressar. Os limites impostos aos filhos, porém, só serão levados em conta se os pais também não exagerarem no uso da tecnologia. Os adultos não podem responder mensagens no celular a todo momento ou verificar os e-mails do trabalho quando estão em algum momento de convivência com a criança. Se a regra combinada é que os filhos não usem 0 tablet durante as refeições, os pais também não podem mexer no celular, a não ser quando for realmente necessário.
A profissional também destaca a importância de reservar um lugar da casa livre de televisão, computador, tablete ou celular, em que a ordem seja apenas brincar e conversar. É nestas atividades que a criança percebe que o mundo real e o virtual são diferentes e ambos podem ser divertidos:
– O ideal seria, para cada atividade online que a criança gosta de assistir, reservar um tempo para representar no mundo real, de forma concreta. Manter os equipamentos desligados para que a criança aprenda que o ritmo do mundo real é diferente do virtual – pontua.
O discernimento entre real e virtual é uma das dificuldades apontadas pela pediatra Mara Mendes, que acrescenta a tendência ao isolamento e ao sedentarismo como outros reflexos de uma infância muito estimulada pelos eletrônicos.
– As novas tecnologias trouxeram algum alento para os pais e cuidadoras e ampliaram o acesso à informação, porém fez mudar para pior a rotina de muitas famílias. Crianças que antes corriam pela casa, bagunçavam o quarto, pintavam paredes, agora passam horas sentadas, quietas e com os olhos voltados para as telas luminosas. Na idade em que a criança está conhecendo a vida por meio de estímulos, de zero a seis anos, trocar interações sociais pela exposição exagerada e passiva às telas restringe o desenvolvimento, além de trazer prejuízos para a qualidade do sono – avalia a pediatra.