Uma criança que hoje tenha até dois anos e meio já terá passado a maior parte de sua vida em situação de pandemia – muitas vezes, convivendo só com os pais. Ainda que muito adaptáveis a novas realidades, os pequenos estão em uma fase chave para o desenvolvimento, o que os torna suscetíveis a consequências graves em aspectos cognitivos, físicos, sociais, linguísticos e emocionais, segundo especialistas. Entre os impactos, estão atrasos na fala, perda de habilidades motoras e o surgimento de transtornos de ansiedade e depressão.
Neurologista pediátrica e coordenadora do Ambulatório de Distúrbios do Neurodesenvolvimento no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Renata Kieling destaca que o uso excessivo de telas, muito comum atualmente, em decorrência da realidade de home office de alguns pais, tem efeito no desenvolvimento da linguagem em crianças pequenas. Elas podem até conhecer as palavras “vermelho” ou “cachorro”, que ouviram em um desenho, e reproduzi-las, mas não sabem usá-las de forma comunicativa.
— Muitas vezes, os pais antecipam as necessidades da criança. Na escola, não: ela deve dar um jeito de comunicar o que quer — diz Renata.
Felipe Ribeiro, dois anos e 11 meses, teve o desenvolvimento da sua fala prejudicado — ele pronunciava muitas palavras pela metade, mas os pais, pelo hábito, o compreendiam. O horário para dormir ficou indefinido e o uso de telas aumentou, porque os pais estavam trabalhando em casa e precisavam se concentrar.
Com o nascimento do irmãozinho dele, Pedro, já em 2021, a família focou na reorganização da rotina, o que incluiu reduzir o tempo de tela.
— Procuramos levá-lo para a pracinha, para pegar um sol e ter contato com outras crianças. Com essa rotina e a retomada das aulas presenciais, ele está superinserido e raramente pede o tablet — comemora a mãe de Felipe, a publicitária Mariana Claus, que percebe que, sem as telas, a criatividade do filho aumentou.
A volta às aulas também trouxe uma rápida evolução na fala do guri, que, agora, pronuncia palavras inteiras. Além disso, ele desenvolveu habilidades de socialização: passou a compartilhar seus brinquedos com outras crianças.
A dona de casa Carolina Seelig tem duas filhas, de seis e 12 anos. Percebeu que o impacto da pandemia foi mais forte na mais nova, Micaela, que, com a falta de contato com a professora e os colegas, tinha dificuldade para falar alguns dígrafos, como “tr” e “dr”. A mãe bem que tentou fazer exercícios de fonoaudiologia em casa, mas de nada adiantava, e a frustração só aumentava. A surpresa veio poucas semanas após o retorno às aulas presenciais, no final de abril:
— Ela chegou em casa já me contando a novidade: estava conseguindo fazer o dígrafo! Foi muita emoção, eu chorei, queria beijar a professora. Como não dá, escrevi um bilhete para ela, agradecendo — conta a mãe.
Para a neurologista pediátrica, o ideal é buscar um equilíbrio, sem demonização das telas. Pode-se, por exemplo, criar regras básicas, como desligá-las nos momentos das refeições ou aos finais de semana, não só as das crianças, mas também as dos pais. O tempo também vai depender de qual o uso que está se fazendo da tela.
— Os próprios órgãos de pediatria indicam o não uso de tela até os dois anos, exceto em videochamadas, porque é diferente o uso passivo e o ativo, no qual a criança se comunica, vê familiares. O que não é positivo é a tela como babá eletrônica, para a criança ficar entretida, porque ela não funciona como um bom estímulo — observa Renata.
Cuidado com a depressão
Na primeira infância, dos zero aos seis anos, o atraso no desenvolvimento pode significar retardo na linguagem e problemas de socialização, como não querer mais estar em público e estranhar o mundo, explica a psicóloga Élida Fluck, especialista em saúde da criança e em terapia sistêmica de famílias e casais. A falta de socialização traz sentimentos como ansiedade, tristeza e solidão, que podem evoluir para transtornos mais graves ou não, dependendo de como as famílias se organizam.
— Algumas famílias conseguiram criar alternativas, mas certamente estar longe da escola é um dos maiores fatores de sofrimento, porque, embora famílias de algumas camadas sociais tenham conseguido se adaptar, não é a mesma coisa para todos — reconhece Élida.
A longo prazo, a psicóloga projeta que pode haver a cronificação, se não tratados, de transtornos de ansiedade, depressões, transtornos de sono, baixa adesão escolar e até evasão, sentimentos de solidão e dificuldades de socialização mais graves. Tudo isso impacta e é impactado pelas dificuldades de relacionamentos familiares, conjugais e de carreira. O segredo é se manter próximo do mundo da criança e conversar com ela, da forma adequada para a faixa etária, sobre o que é a pandemia, falando de conceitos como morte e luto.
No consultório de Laura Lichtenstein Corso, psicóloga especialista em estimulação precoce, têm chegado com mais frequência casos de crianças de um a dois anos, sem diagnóstico de transtorno mental, com atrasos no desenvolvimento, o que normalmente não ocorria. Ela percebe que as crianças estão mais fóbicas e com muitos medos. Por outro lado, acredita que os sintomas não devem criar uma geração com mais problemas de saúde mental.
— A pandemia pode deixar marcas muito dolorosas, mas nunca se falou tanto em saúde mental. Crianças e adolescentes têm falado até no TikTok sobre seus terapeutas, o que é interessante, porque eles não veem mais o psicólogo como alguém para resolver uma grande questão, e sim como alguém que pode ajudar a não deixar que as coisas piorem — reflete Laura.
As filhas de Carolina Seelig tiveram distúrbios do sono, trocando o dia pela noite. Antonella, 12 anos, teve ansiedade e picos de depressão, especialmente no início da pandemia. Ao contrário de muitos de seus colegas, a menina não tem redes sociais nem WhatsApp, o que fez com que se distanciasse dos amigos. Por um tempo, ficou triste e, às vezes, não queria nem sair da cama. Já Micaela, de seis, se sentia muito sozinha e chegou a parar de acompanhar as aulas da Educação Infantil, no ano passado.
— Tivemos nossos altos e baixos. A Micaela sofreu mais com a falta de amigos, se sentia muito sozinha, tinha raiva do vírus e desenhava ele, dizia que tinha criado uma arma para eliminá-lo. Não gostava de participar das aulas online. Optei por não insistir ou brigar com ela — relata Carolina.
A advogada Alessandra Formighieri também percebe o filho, Mateus Eduardo Formighieri Dossin, de 11 anos, mais ansioso e com distúrbios regulares de sono. Estudante da rede municipal de Cachoeirinha, o menino segue sem frequentar aulas presenciais, porque a família entendeu que a instituição não oferece as condições de segurança necessárias para o retorno, e está sendo ensinado pela própria Alessandra.
— Ele também tem medo de se contaminar. Um mês atrás, fomos dar uma volta no Pontal do Estaleiro, de máscara, para pegar um sol. Ele passou a dizer que não queria mais aquilo, porque as pessoas não estavam se cuidando — recorda a mãe.
O garoto, que não tinha o costume de jogar online e conversar pelo WhatsApp, ganhou um celular, para não perder o contato com os amigos.
— O Mateus sempre brincou muito na rua, jogava bola, subia em árvore. Eu acho bem ruim que ele fique na frente do computador por muito tempo, mas, como não pode sair, acabo deixando, mesmo percebendo que ele se tornou uma criança mais ansiosa. Vivo esse dilema — lamenta Alessandra.
A advogada destaca que a carga de lidar com a ansiedade e as aulas em casa tem recaído sobre as mães — especialmente as mães solo. Ela, por exemplo, precisou reduzir o tempo de trabalho para dar conta de pesquisar, preparar as atividades e ensinar o menino.
De acordo com a psicóloga Élida, quando a criança está na faixa etária do final do Ensino Fundamental, a socialização com os pares é importante, pois é quando está dialogando com pessoas que pensam como ela.
— Não ter contato com os pares pode deixar a criança muito tímida, sem saber mais como fazer amigos. Antes, ela podia trocar lanches com os colegas ou oferecer o lápis de cor, mas, agora, nada disso pode. O adolescente, que está sempre de braços dados ou mesmo namorando, também não pode fazer mais isso — exemplifica Élida, que salienta que o abre-e-fecha das escolas também é muito prejudicial para os alunos, que se preparam emocionalmente para uma situação que acaba mudando.
A professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carmem Craidy, reconhece que a vida é o bem maior, e que é melhor que a criança fique viva mesmo que perca um ano de estudo ou tenha algum atraso no desenvolvimento.
— Essa pandemia é uma tragédia humana que atingiu a vida de todos nós, mas ainda mais as crianças, que estão em um momento de desenvolvimento acelerado. Porém, um certo atraso no desenvolvimento se recupera. A vida, não — avalia a educadora.
Carmem indica que os pais procurem manter um ambiente de descontração, e não de estresse, e que leiam e discutam assuntos com a criança para manter viva a sua curiosidade de aprender e não deixá-la ansiosa demais.
Um estudo feito por pesquisadores portugueses, publicado na revista Children, da editora MDPI, analisou as habilidades motoras fundamentais de crianças com seis a nove anos, antes e depois do lockdown realizado no país, no ano passado. O resultado foi que, além de não terem desenvolvido as habilidades, meninos e meninas perderam competências em cinco dos seis exercícios verificados (exceto no caso do salto lateral, entre os garotos). As atividades envolviam pular, correr e se equilibrar.
Essa pandemia é uma tragédia humana que atingiu a vida de todos nós, mas ainda mais as crianças, que estão em um momento de desenvolvimento acelerado. Porém, um certo atraso no desenvolvimento se recupera. A vida, não.
CARMEM CRAIDY
Professora de Educação da UFRGS
— Uma criança que fica um ano e meio sem correr perde a eficiência motora para essa habilidade, e crianças com menos habilidades motoras costumam ter um nível menor de atividade física, o que as leva a serem mais sedentárias na adolescência e também na vida adulta — pontua Rodrigo Sartori, professor da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
O sedentarismo, se mantido, aumenta o risco de desenvolver doenças ligadas a questões cardiovasculares na vida adulta, como o AVC e a diabetes. A falta de atividade física, segundo Sartori, também impacta no desempenho de aprendizagem das crianças, em áreas como a memória e o controle inibitório, porque quando uma pessoa vai fazer um movimento, ele é organizado, antes, no cérebro, o que exercita a capacidade cognitiva.
As habilidades motoras, contudo, podem ser recuperadas, desde que a criança entre em programas de intervenção e tenha suporte para a prática motora – o que pode ser feito até mesmo dentro de casa, desde que com uma frequência mínima de duas a três vezes por semana.
— Qualquer possibilidade de movimentar a criança é importante, mas é interessante pedir para ela fazer coisas como correr lateralmente, de costas, galopando, o que faz com que o sistema cognitivo dela crie novos planos motores para ela se desenvolver — sugere o professor.
Sartori salienta que a educação física escolar é uma disciplina tão importante quanto a matemática, pois possibilita o desenvolvimento cognitivo e social da criança.
O ambiente de atividade motora também permite que o estudante experiencie emoções como alegria, quando se acerta, e tristeza, quando se erra, o que desenvolve a capacidade de lidar com a frustração.
Impacto depende da idade e da situação familiar da criança
A faixa etária com menos risco de impacto pela pandemia é a dos bebês de menos de dois anos, segundo a neurologista pediátrica Renata Kieling, pois, nessa idade, eles precisam muito mais de um adulto afetivo e presente por perto do que um espaço mais amplo para experiências.
Se os pais tiveram capacidade de se adaptar bem a essa situação e não tiveram eles próprios um sofrimento psíquico e mental intenso, provavelmente eles conseguiram dar conta disso para os filhos. Em famílias nas quais os pais estavam sofrendo muito, isso repercutiu nas crianças.
RENATA KIELING
Neurologista pediátrica
— O ambiente da casa é suficiente para o bebê ter as principais experiências de que precisa. Mesmo assim, é importante levá-lo para a rua, para ter experiências sensoriais, como exposição à água, à areia, à grama, ao movimento do balanço — cita.
Entre os dois e os cinco anos, as crianças têm um desenvolvimento forte da socialização. Por isso, é uma faixa etária que apresenta perdas significativas, que variaram de acordo com quão restritivo foi o ambiente no qual o pequeno viveu.
— Se os pais tiveram capacidade de se adaptar bem a essa situação e não tiveram eles próprios um sofrimento psíquico e mental intenso, provavelmente eles conseguiram dar conta disso para os filhos. Em famílias nas quais os pais estavam sofrendo muito, isso repercutiu nas crianças — analisa a médica.
Entre crianças em cidade escolar, o momento é de busca por autonomia em relação aos pais e de autoidentificação como indivíduos capazes, o que pode gerar uma frustração, uma vez que a pandemia as “prendeu” de volta ao núcleo familiar. A recomendação na neurologista pediátrica é que, garantindo-se a segurança, os pequenos sejam levados a ambientes ao ar livre e encontrem os amigos – um ou dois por vez, sempre de máscara.
O futuro exigirá um “bom processo pedagógico”
Presidente do movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz aponta que a suspensão das aulas presenciais ampliou a desigualdade entre crianças de escolas públicas e privadas em todos os níveis de desenvolvimento e as expôs à violência e à desnutrição, antes amenizada pela frequência nas instituições de ensino.
— Preferimos não dar acesso à educação e abrir shoppings, enquanto as crianças são invisibilizadas e seguem sofrendo. É preciso priorizar a manutenção das escolas abertas, com ventilação e oferta de máscaras de qualidade — defende Priscila.
Para o futuro, a professora Carmem Craidy, da UFRGS, diz que serão necessárias muitas pesquisas ainda para entender a proporção do impacto da pandemia na aprendizagem das crianças.
É que tudo passa pela tensão vivida pelas famílias e, ao mesmo tempo, a necessidade de mandar os filhos para a escola. As perdas múltiplas, porém, podem ser recuperadas com um bom processo pedagógico, que envolva o acolhimento de crianças e educadores, que voltarão com traumas, além de paciência e cuidado dos professores com os pequenos.
— Para essa construção progressiva, será preciso que a educação tenha aporte financeiro, pois precisaremos ter menos crianças em sala de aula, o que significa ter mais professores, com orientação adequada, apoio e remuneração digna. Sem isso, o prejuízo poderá ser irreparável — pondera Carmem.
O impacto real da pandemia nas crianças só será conhecido daqui a anos, na opinião da psicóloga Laura Lichtenstein Corso. Porém, ela se mantém positiva e lembra que muitas crianças já se desenvolvendo em períodos de guerra e ditaduras e isso não gerou uma sociedade totalmente disfuncional.
— O lindo é a força que as crianças têm de viver, brincar e se desenvolver apesar de tudo isso. Podemos apostar muito nessa força e maleabilidade — ressalta.