Há um ano, o Rio Grande do Sul começou a contar as vítimas da covid-19. hoje Já são mais de 15 mil mortos. GZH conversou com pessoas próximas a três dessas vítimas e foi aos locais onde elas mantinham suas atividades. As saudades da médica Lizie, do guarda municipal Ipson e da secretária escolar Liane estão nos depoimentos de amigos, familiares e colegas de trabalho e nas fotografias que você vê nas três reportagens. A seguir, o retrato da ausência de Lizie Ester Rochichner Kunde.
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A caminhada à beira-mar, nas tardes de sábado em Tramandaí, no Litoral Norte, era um dos poucos momentos fora do trabalho que a médica Lizie Ester Rochichner Kunde, 60 anos, não deixava de realizar. No restante do tempo, ela estava disponível para atender nas unidades de saúde da cidade e da vizinha Cidreira. Desde 3 de março, porém, a clínico-geral, médica do trabalho, emergencista e dermatologista deixou uma centena de pacientes, muitos admiradores do trabalho da profissional. Ela foi vitimada pela covid-19.
Ex-assessor da Secretaria da Saúde de Tramandaí, o hoje vereador Richard Stoll, 33 anos, tinha uma tarefa que havia virado tradição às quintas-feiras: levar café e um pão caseiro ou um bolo para compartilhar com a amiga Lizie, enquanto ela atendia no Centro de Especialidades de Tramandaí. Era uma forma de fazê-la parar entre um paciente e outro, pois, do contrário, a médica não fazia intervalo.
– Lizie era uma segunda mãe para mim. Tínhamos uma conexão de alma. Da mesma forma que ela era boa comigo, eu tentava ser com ela. E, por isso, foi um choque muito grande perdê-la – comenta Richard.
Quem via Lizie sempre sorrindo talvez não soubesse que, por trás da disponibilidade e do alto astral, havia uma mulher lutando contra o câncer. A descoberta ocorreu em 2016, quando soube que estava com um nódulo maligno na mama e já com metástase óssea na coluna. Para o tratamento inicial, com radioterapia e quimioterapia, precisou parar de trabalhar por três meses. Foi o único período em casa. Depois, exigiu voltar ao trabalho. Proibida pelos médicos de dirigir, Lizie reservou ao marido, o administrador Paulo Cesar Kunde, a tarefa de transportá-la até os postos onde atuava. Foram 15 anos trabalhando nas unidades de saúde de Cidreira e de Tramandaí.
– Mesmo com todo o sofrimento causado pelo câncer, não tirava o sorriso do rosto. Ela era tão forte! Uma mulher muito guerreira – afirma o vereador.
Para suportar as dores na coluna, Lizie passou a carregar uma almofada que era estrategicamente colocada sobre uma cadeira de plástico, a mais confortável diante das dores nos ossos. Por esse motivo, ganhou o apelido carinhoso de Lizie Almofadinha. No início deste ano, com o surgimento de uma metástase no fêmur, a médica precisou realizar cinco novas sessões de radioterapia durante uma semana. Para não deixar de atender os pacientes, organizou a escala de forma que pudesse ir a Porto Alegre e, no retorno, continuar trabalhando.
Quando foi declarada a pandemia, a médica negou-se a ficar em casa, mesmo sendo de grupo de risco.
– Ela era viciada em trabalho. Ficava de sobreaviso à noite, e, se precisasse, saía disposta para atender os pacientes. Fazia por amor à profissão. Durante a pandemia, era comum a chamarem no meio da noite para alguma remoção – recorda o marido.
Formada em Medicina em 1983 e mãe de três filhos – Fabiane, 26 anos, Leonardo, 29, e Stephanie, 32 anos –, Lizie alimentou durante a vida o sonho de ter o seu próprio centro médico. Uma semana antes de positivar para covid-19, ela inaugurou o prédio, em Cidreira, onde atuaria ao lado da filha Fabiane, que é dentista. Mas Lizie trabalhou apenas dois dias no local.
Os primeiros sintomas da covid-19 surgiram em 13 de fevereiro, no sábado de Carnaval. No domingo, surgiu um princípio de falta de ar. Lizie foi diagnosticada com a doença na segunda-feira e, no dia seguinte, internada em Porto Alegre. Antes de falecer, ficou entubada por 10 dias.
A morte da médica comoveu moradores de Cidreira e de Tramandaí, onde a administração municipal decretou luto de três dias. Centenas de mensagens de carinho foram deixadas nas redes sociais das duas prefeituras. A família recebe até hoje recados de profissionais da saúde e ex-pacientes de Lizie lamentando a partida da médica.
No dia do velório, carros que passavam em frente ao local onde ocorria a rápida cerimônia buzinavam em homenagem à Lizie. Colegas de Tramandaí fizeram um buzinaço no horário do sepultamento. Em Cidreira, os funcionários do Centro Integrado de Saúde Eva Dias de Mello reuniram-se em frente ao prédio e cantaram uma música para lembrar a médica.
– Sabíamos que ela era muito querida pelas pessoas, mas não imaginávamos que era tanto. Isso nos conforta e nos dá forças para seguir. É o que ela gostaria que fizéssemos – resume a filha Fabiane.