O vírus já é conhecido, mas é como se uma nova pandemia tivesse atingido o Rio Grande do Sul nos últimos dias. Em meio a uma escalada vertiginosa de internações hospitalares e de impacto generalizado entre regiões, a disseminação da covid-19 adquiriu características que ainda não haviam sido observadas no Estado. A combinação entre o espalhamento de novas variantes do coronavírus, o descuido com medidas de prevenção e o final das férias deixa especialistas temerosos de um agravamento desenfreado nas próximas semanas.
O avanço atual da doença é mais rápido e abrangente do que havia sido registrado desde seu desembarque em solo gaúcho. Em uma semana, as hospitalizações cresceram 43% em leitos clínicos e 22% em unidades de terapia intensiva (UTIs), conforme dados disponíveis até as 13h desta sexta (19). O fenômeno passou a atingir praticamente todas as partes do Estado: das sete macrorregiões de saúde, seis tiveram aumento nos dois tipos de atendimento ao longo de sete dias — apenas o Sul teve ligeiro recuo nas UTIs (veja no gráfico logo abaixo).
— Já tivemos momentos em que a região Norte ficava mais complicada, depois a zona de Caxias, ou a Metropolitana. Nesse momento, pela primeira vez, estamos vendo um agravamento geral, com elevação da demanda por leitos clínicos e de UTI — alerta o diretor da Auditoria do SUS da Secretaria Estadual da Saúde (SES) e integrante do gabinete de crise do governo estadual, Bruno Naundorf.
A nova fase da covid-19 traz ainda outras peculiaridades vistas pela primeira vez — e para as quais ainda não há explicações conclusivas. Apesar da escalada íngreme de hospitalizações, esse cenário ainda não se reflete por inteiro nos números de novos casos e óbitos.
A última semana de janeiro e a primeira de fevereiro chegaram a registrar um leve decréscimo no número de exames positivos tabulados por data de início dos sintomas — de 12,9 para 12,5 mil. Mas o coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt, considera que o fato de esse recuo ser inferior ao que vinha sendo observado em semanas anteriores já era um indício preocupante.
— O Rio Grande do Sul estava caindo (no número de casos) de forma cada vez mais devagar, o que indicava reversão de tendência — diz Isaac, que lembra de novos complicadores no cenário atual, como o final das férias, a volta às aulas e o aumento da mobilidade nos municípios.
Ainda assim, o infectologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alexandre Zavascki afirma que a evolução recente da pandemia é atípica:
— É uma situação que ainda não tínhamos visto, com muitas pessoas internando em um curto período de tempo sem um aumento no número de casos na mesma proporção. Talvez tenhamos testado menos durante as férias — cogita Zavascki.
Esse cenário pode estar mudando rapidamente. O virologista e professor da Universidade Feevale Fernando Spilki revela que a demanda por exames na instituição de Novo Hamburgo disparou nos últimos dias, assim como o índice de resultados positivos para covid-19:
— Quase dobrou a demanda diária do nosso serviço (de testagem), e disparou o índice de positividade. Estávamos na faixa de 30% de amostras positivas, e agora chega a 53%.
A quantidade de óbitos, segundo o painel de monitoramento da SES, subiu de 311 para 317 entre as semanas epidemiológicas 5 e 6 (nos sete dias anteriores a 6 e a 13 de fevereiro, respectivamente). Pode ser que nem todas as mortes ocorridas mais recentemente já tenham sido notificadas. Além disso, é provável que os efeitos da atual avalanche de adoecimentos só resultem em uma elevação da mortalidade nos próximos dias ou semanas.
Só as hospitalizações já são uma carga de sofrimento considerável para os pacientes e para o sistema de saúde
RICARDO KUCHENBECKER
Epidemiologista do Clínicas
— Novas infecções geram novas internações, que procuram justamente evitar ou postergar os óbitos. Podemos ainda não estar vislumbrando as mortes que talvez só venham a ocorrer em duas, três semanas. Mas só as hospitalizações já são uma carga de sofrimento considerável para os pacientes e para o sistema de saúde — avalia o gerente de Risco do Hospital de Clínicas, Ricardo Kuchenbecker.
O infectologista Ronaldo Hallal, integrante do Comitê de Covid-19 da Sociedade Riograndense de Infectologia, aponta que uma redução significativa na mobilidade é necessária para impor um freio à disparada de internações por coronavírus.
— O modelo de distanciamento controlado não contém a circulação viral, apenas aciona procedimentos a partir do impacto hospitalar. É preciso reduzir a mobilidade. As pessoas precisam de recursos para poder ficar em casa, mas é necessário mais isolamento — observa Hallal.
O infectologista destaca ainda a importância de testar em larga escala, identificar e isolar casos confirmados e rastrear pessoas que tiveram contato com eles.
Bruno Naundorf afirma que o governo gaúcho está estudando novas medidas para barrar o coronavírus. Em entrevista à Rádio Gaúcha na manhã desta sexta-feira (19), o diretor de Regulação da SES, Eduardo Elsade, observou que o modelo de distanciamento adotado no Estado leva em conta critérios científicos para definir medidas de contenção da pandemia.
Novas variantes do coronavírus avançam no país
Uma das hipóteses cogitadas para o agravamento da pandemia em regiões como Amazonas, o oeste de Santa Catarina, o interior de São Paulo e, nos últimos dias, o Rio Grande do Sul, é a disseminação de novas cepas do coronavírus classificadas como P1 e P2.
Juntas, conforme análises genéticas compiladas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em janeiro, já representam mais da metade dos casos de covid-19 analisados no país. As duas somaram 77% dos sequenciamentos realizados no período.
A P1, identificada em Manaus e com um caso confirmado no Estado até o momento (embora se acredite que já possa estar circulando), está associada a uma maior capacidade de transmissão. A P2, predominante atualmente no Rio Grande do Sul (veja quadro abaixo), com presença em quase 70% das amostragens mais recentes, ainda está sob estudos a respeito de uma eventual capacidade maior de transmissão ou de escapar de anticorpos.
O virologista e professor da Universidade Feevale Fernando Spilki avalia que pode haver um aumento ainda maior de casos nas próximas semanas, estimulado, também, por esse realinhamento das cepas virais descobertas nos últimos meses.
— Essas variantes novas estão substituindo o nicho ocupado por outras linhagens em razão de mutações que podem estar impactando na transmissibilidade e, pelo que imaginamos, também na resposta (imunológica) de quem foi infectado anteriormente. Pode ser efeito das variantes, mas, além disso, as medidas que vêm sendo tomadas para conter qualquer outra linhagem do coronavírus são muito brandas — sustenta Spilki.
O gerente de Risco do Hospital de Clínicas, Ricardo Kuchenbecker, acredita que a marcha dessas linhagens recém-descobertas pode ter coincidido com um relaxamento das ações de prevenção devido à sensação de segurança despertada pela chegada das primeiras vacinas.
— Com o início da vacinação, pode estar ocorrendo um relaxamento das medidas em relação a máscaras e distanciamento. Mas há um descompasso entre o que as pessoas podem estar pensando e o andamento da imunização. No ritmo atual, só teríamos redução de casos no final do ano — observa Kuchenbecker.