Há um ano, o Rio Grande do Sul começou a contar as vítimas da covid-19. hoje Já são mais de 15 mil mortos. GZH conversou com pessoas próximas a três dessas vítimas e foi aos locais onde elas mantinham suas atividades. As saudades da médica Lizie, do guarda municipal Ipson e da secretária escolar Liane estão nos depoimentos de amigos, familiares e colegas de trabalho e nas fotografias que você vê nas três reportagens. A seguir, o retrato da ausência de Ipson Silveira Pavani.
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Defensor das causas ambientais, o guarda municipal da prefeitura de São Leopoldo Ipson Silveira Pavani, 61 anos, vivia o seu melhor no momento em 22 anos na função, relatam a família e os colegas, porque atuava diretamente no Grupamento de Defesa Ambiental (GDA) do município do Vale dos Sinos. Apaixonado pelos animais, principalmente as aves, ele morreu vítima de covid-19 em 29 de julho do ano passado.
Ipson, chamado de “professor Pardal” pelo colega de plantões 24 horas Lucas Carasai, deixou uma marca na sala de comando do GDA. Por gostar de marcenaria, construiu os alçapões, o material de manejo das serpentes, as caixas de capturas, o suporte para colocar as armas dos colegas e até a mesa de trabalho. E fazia questão de fabricar alguns dos equipamentos nos dias de folga.
Ao lado do filho único, Ipson Oliveira Pavani, o guarda construiu um quiosque e a piscina da família.
– Ele tinha um quartinho da bagunça porque gostava de fazer uma gambiarra. Juntava caquinhos num ferro-velho e construía um equipamento, como uma máquina de cortar vidro – revela o filho.
O guarda começava a viver a fase de avô, a partir do nascimento dos netos gêmeos, Matheus e Murilo, em março de 2020. Como temia contaminar a família do filho, que mora no mesmo terreno em que ele vivia com a mulher, Jane, Ipson chegou a ficar duas semanas dormindo na sala do GDA logo no início do distanciamento social.
– Os netos eram a grande paixão dele. Tornou-se um avô babão, mesmo trabalhando muito, porque ele não parava nem nas folgas. Nos últimos oito anos, fizemos muitas obras juntos na nossa casa e ficamos ainda mais próximos. Perdi meu melhor amigo – confessa o filho.
Por ter problemas de audição desde a infância, Ipson desenvolveu com afinco a percepção. O colega Lucas relata que, nas rondas, ele era o primeiro a identificar algo irregular. Os dois atuaram juntos por três anos e compartilhavam, além da viatura, histórias e experiências, como se fossem pai e filho (Lucas tem 36 anos).
– Ele era um segundo pai para mim. Tenho o Pavani como amigo, a pessoa especial que não media esforços para ajudar, e como o colega de profissão, o apaixonado pelo trabalho e que não queria deixar a função nem quando testou positivo para covid-19 – diz Lucas.
Os primeiros sintomas da doença surgiram 15 dias antes da morte de Ipson. Lucas recorda que o amigo começou a tossir muito. Três dias depois, no plantão seguinte, foi trabalhar mesmo demonstrando fraqueza. Foram os colegas que o levaram à unidade básica de saúde.
– Ele só queria ir para casa quando terminasse o horário de trabalho, na manhã seguinte. E ainda me pediu desculpas por não concluir o serviço do turno. Antes de nos despedirmos, fomos buscar alguns objetos pessoais e o carro dele na Guarda Municipal. Eu o acompanhei por um trecho, o seguindo com a viatura. Quando dobrei e entrei no Parque Imperatriz (sede do GDA), ele seguiu adiante. Foi muito triste. Tive uma sensação de perda. Na verdade, foi a última vez que o vi com vida – emociona-se Lucas.
Três dias depois, Ipson foi internado. Diariamente, Lucas ia ao hospital para saber o estado de saúde do amigo. Quando houve piora nos sintomas, Lucas decidiu escrever uma carta desejando que se recuperasse. A mensagem chegou a ser entregue, mas não houve retorno de Ipson porque o quadro piorou. A carta foi colocada dentro do ataúde do guarda municipal. Antes do sepultamento, colegas fizeram uma carreata em homenagem a Ipson. Lucas estava presente.
– Pavani continua em cada canto desta sala e desta cidade. Por onde passo, lembro do meu amigo – comenta, emocionado, Lucas, que, depois da morte do amigo, assumiu a função de seguir reformando os equipamentos feitos pelo colega falecido.
No dia da produção de fotos que ilustram esta reportagem, uma caturrita apreendida recentemente aguardava sobre uma gaiola, na parte externa da sala do GDA, para ser encaminhada ao órgão competente. Quando o fotojornalista se preparava para a primeira imagem do casaco de Ipson, em outra extremidade da área, o pássaro voou e caminhou em sua direção. Um dos guardas municipais estendeu a mão a ela e colocou-a sobre o casaco. A caturrita permaneceu ali, imóvel. Naquele momento, os quatro funcionários, incluindo Lucas, lembraram do amigo falecido. Lucas considerou um bom sinal.