Há um ano, o Rio Grande do Sul começou a contar as vítimas da covid-19. hoje Já são mais de 15 mil mortos. GZH conversou com pessoas próximas a três dessas vítimas e foi aos locais onde elas mantinham suas atividades. As lembranças da médica Lizie, do guarda municipal Ipson e da secretária escolar Liane estão nos depoimentos de amigos, familiares e colegas de trabalho e nas fotografias que você vê nas três reportagens. A seguir, o retrato da ausência de Liane da Graça Peletti de Souza.
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Era com um largo sorriso que a secretária Liane da Graça Peletti de Souza costumava receber quem buscasse atendimento na secretaria da Escola Municipal de Educação Infantil Pedacinho do Céu, no Jardim Planalto, em Esteio. E é essa imagem que a comunidade escolar onde ela trabalhou nos últimos 20 anos vai guardar de Liane, falecida aos 61 anos, em 28 de fevereiro, vítima da covid-19.
Alunos também seus pais Liane chamava pelo nome, graças à excelente memória. O carinho dedicado à função se tornou uma marca da secretária. Um exemplo da admiração está nos mimos diários que recebia de um menino de 11 anos, ex-aluno da instituição. Ele ainda acompanha os irmãos mais novos à escola e, todos os dias, presenteava a amiga com uma flor. Numa das últimas vezes em que esteve na Pedacinho do Céu, o menino entregou também um desenho no qual se vê ele e Liane conversando na frente da escola.
O menino escreveu que havia voltado das férias e fizera aquela ilustração com muito amor. No destinatário, a indicação “Linda Liane”, escrita dentro de um coração. O presente, que estava entre os pertences pessoais da secretária, foi entregue à família após a sua morte. A direção da escola ainda não sabe se os responsáveis pelo menino contaram a ele sobre a perda.
Colega de Liane há 15 anos, desde que passou a ser professora na escola, a hoje diretora Clair Rauber, recorda que a secretária estava sempre disposta a ajudar. Diariamente, ia de Canoas, onde morava, a Esteio. Das 8h às 17h, o balcão da secretaria era dela.
– Liane amava o que fazia e dizia que naquele espaço podia conhecer muitas pessoas e trocar ideias. A comunidade escolar tinha muito apego a ela. A Liane, mesmo que estivesse com algum problema, estava sempre sorrindo e era o nosso braço direito – conta, emocionada, a diretora.
Formada no Magistério, Liane gostava de costurar e ver filmes natalinos. Entre familiares e colegas de trabalho, ficou conhecida pelo amor à família. Chegou a deixar a própria casa para cuidar do pai, Telmo, 86 anos, que tinha Alzheimer, e da mãe, Geny, 89, acamada. Há alguns meses, Telmo precisou ser internado em uma clínica geriátrica.
– Ela era uma supermãe. Abdicou da própria saúde física para cuidar dos meus avós. E nunca perdeu o sorriso – recorda a filha, a massoterapeuta Cibele Peletti de Souza, 35 anos.
Na agenda pessoal, Liane fez anotações de tarefas até 11 de fevereiro, última data em que trabalhou. No dia seguinte, chegou a ir à escola, mas precisou deixá-lo às pressas após de receber um chamado da clínica onde vivia o pai. Apresentando um quadro de pneumonia, o idoso precisou ser internado. Liane, mesmo asmática e diabética, se dispôs a cuidar dele no hospital. Telmo positivou para covid-19. Liane igualmente, assim como o marido dela, Carlos Alberto Bertó de Souza, 66, a mãe e o irmão de Liane, Mauro, que tem 56.
Telmo faleceu em 23 de fevereiro, e o restante da família permaneceu em isolamento. Cibele veio de Santa Catarina, onde mora, para cuidar dos pais e da avó. A única que não se contaminou foi a irmã, Daniele, 25 anos. Cibele recorda que, até um dia antes de falecer, a mãe apresentava quadro leve da doença. Tudo mudou em 24 horas.
– No domingo, ela teve falta de ar, mas as pessoas diziam que não deveríamos ir ao hospital porque estava lotado. Porém, ela começou a pedir por oxigênio e estava nervosa. Chamamos uma ambulância particular porque a saturação dela estava 83. Quando a ambulância chegou, a saturação foi a 98. Eles deram medicação e não quiseram removê-la. Ela ficou implorando por ajuda. No meio da noite, minha mãe não aguentou e teve um infarto fulminante. Morreu nos meus braços – recorda Cibele.
Na escola, a notícia chegou no dia de reabertura das atividades a distância, em 1º de março. Clair recorda da comoção entre colegas de trabalho e familiares dos 250 alunos. Uma semana depois, a comunidade escolar homenageou Liane, com a presença da família. Como não houve tempo para despedirem-se, devido à pandemia, reuniram-se, com distanciamento, ao redor de uma árvore no pátio. Ali, fizeram a despedida final.