Fernando Seffner é professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde coordena a linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Ele conversou com GaúchaZH sobre a polêmica declaração da ministra Damares Alves, titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (PSL) e sobre estereótipos de gênero na criação de meninos e meninas. Leia os principais trechos da entrevista:
Quais as consequências de seguir ou não padrões de gênero na criação dos filhos?
Seria legal talvez dizer que uma das consequências de estimular as meninas para que elas sigam outros caminhos e experimentem outras coisas que não aquilo que tradicionalmente é dado, e vice-versa para os meninos, é o fato de ter uma ministra mulher. Se antes da Damares não tivesse havido mulheres na vida pública, que é uma coisa mais ou menos recente na história brasileira, essa ministra não estaria lá. Certamente ela está lá porque seguiu caminhos que têm a ver com ambientes masculinos. No ambiente dos pastores, fortemente masculino, de onde ela vem, ela é uma notável exceção. Hoje em dia, estamos vivendo uma guerra de narrativas. Uma narrativa que diz que homens e mulheres têm de seguir padrões mais tradicionais, então homens têm de vestir azul, jogar futebol, serem violentos, e mulheres têm de ser mais delicadas e vestir rosa. Pode-se atravessar essas fronteiras, e isso produz trajetórias cada vez mais interessantes. Uma palavra-chave é experimentação, desde a Educação Infantil. Se na hora da fantasia o menino colocar um sapato feminino ou se interessar pelo batom, a minha política é que se diminuísse o pânico. Ele não vai ser necessariamente gay, ele está experimentando aquilo. Na maioria das vezes, a gente tem a produção de um menino heterossexual um pouco mais delicado. Por exemplo, um pai mais dedicado a cuidar dos filhos. Temos jogos de inteligência e de armar que são claramente sem gênero. Estimularia outros percursos. Tem que parar com esse temor de que o rapaz, porque se interessa por perfumes, vai ser gay. É um estereótipo enorme, raso, do ponto de vista das relações humanas. Como se a força das coisas estivesse nos objetos. Mas eu sei que isso é um drama. Por mais que tenha avançado, no fundo as pessoas não querem ter filhos gays e filhas lésbicas.
E o que você diria sobre as incursões nos universos mais claramente demarcados, como o menino que quer brincar de cozinhar com as panelinhas e a menina que quer brincar com carrinhos?
O que tem acontecido é a oferta, num mesmo ambiente, seja a casa, seja a escola, de muitos elementos masculinos e femininos, aí você vê o que as crianças escolhem, estimula o cruzamento de fronteiras. Em Canoas, há escolas com grupos de rap, uma dança mais masculina, mas as meninas também podem dançar. Converse: você não quer experimentar cozinhar alguma coisa? Aqui em Porto Alegre há muitas escolas com classes para crianças pequenas e algumas escolas privadas onde os alunos aprendem a fazer alguns alimentos. A criança escolhe a comida de que gosta e aprende. O menino aprende a fazer o que ele gosta e não a mandar a mulher fazer o que ele gosta, como meu pai historicamente disse para a minha mãe, mas tudo bem, eles eram de outra geração. Quanto aos brinquedos, há colegas da Educação Física que, para as idades menores, criaram modos de jogar futebol e vôlei com times mistos e separados. Estabelecer algumas atividades como corrida, experimentação com skate para meninos e meninas... Vi uma vez, em uma escola, muitos meninos e meninas com skates bem pintados por eles. Ou seja, a atividade está acessível a todos, e cada um lida de uma forma diferente com ela. Estudos já mostraram que as meninas, ao fazerem alguns esportes, como skate e ciclismo, revelam-se mais cuidadosas, ao contrário do que se diz, "ah, o menino se dá melhor, ele pula em cima da bicicleta e sai correndo". Não, ele pula em cima da bicicleta sem capacete, sai correndo e se quebra todo. A menina vai em cima da bicicleta com capacete, lê as instruções e tem outro tipo de comportamento. Existe um capital feminino de modo de fazer as coisas que é muito valorizado pelas empresas hoje em dia. Como elas têm mais medo de errar, porque sabem que vão ser mais criticadas pelos homens, examinam com mais atenção o problema antes de sair louqueando na solução. Isso é porque elas sabem que estão inaugurando a sua presença em algumas posições. Em uma aeronave em que viajei esses tempos, a aeromoça informou que o voo estava com a comandante fulana. Ato contínuo, o homem que estava ao meu lado disse: "Espero que ela consiga achar o aeroporto". Típica piada masculina. E, ato contínuo, respondi: "Olha, meu senhor, essa mulher, para chegar até aqui, com certeza teve que provar com muito mais eficiência do que um homem que ela é capaz de comandar porque invadiu um terreno masculino, então estou muito mais tranquilo com ela".
Experimentações enriquecem, então, o repertório da criança.
Enriquecem. Perceber que eu posso ser um homem gostando de algumas coisas do universo feminino estabelece uma possibilidade cognitiva maior para os meninos. Não é só questão de valorização da diversidade, "vou ali fritar ovo porque sou homem, mas tudo bem, sou um homem moderno e vou dar uma ajuda para a mulher". A questão não é apenas isso. Se fosse só isso já estaria mais ou menos bom. Tem vários trabalhos mostrando a questão de ordem cognitiva, do aprendizado. Eu entendo melhor o que é ser homem quando experimento fazer coisas que a sociedade diz que são de mulher, e vice-versa. O menino entra na cozinha, como já vi mais de uma vez, se dá conta dos modos como a mulher faz coisas e logo quer fazer do jeito masculino. Ele substitui uma noção meio genérica, como "pitada de sal", e diz que não é pitada, que é uma colherzinha bem pequenininha com tantos gramas de sal. Dá uma "matematizada". Quer fazer aquilo, mas de um jeito masculino. Isso é um engrandecimento. Uma colega minha analisou quartos de meninos e meninas em revistas. É muito interessante quanto a família dialoga com o menino, vai compondo o quarto perguntando o que ele quer e também sobre coisas femininas, por exemplo, se ele quer ter uma flor no quarto. Que flor seria? Ao contrário de comprar pacotes prontos: um pôster do Neymar, uma coisa para botar a bola... Isso desenvolve uma questão de ordem cognitiva. Não quero entrar nessa vibe de dizer que pessoas mais conservadoras são burras. Não gosto disso. Elas têm posições diferentes. Mas sou obrigado a reconhecer que as pessoas ficam mais inteligentes quando circulam por territórios que não são seus.
Então é salutar dar liberdade para a criança escolher?
Sim, e ir dialogando sobre isso. Veja bem, não vou negar que, em uma sociedade tão louca, um pai e uma mãe atentos têm que prevenir algumas coisas. Se o menino disser "eu vou me vestir de menina para ir para a escola", eles devem dizer que ele pode sofrer violência. "Como é que nós vamos providenciar para que você faça isso que tem vontade sem sofrer violência?" Alguém vai dizer: "Ah, no Carnaval pode". Sim, sempre pôde, mas hoje em dia tem uma quantidade enorme de meninos e meninas que atravessam (a fronteira). Esses dias visitei uma escola e vi um menino com cabelo moicano supercuidado. Falei que ele estava bonito e que deveria dar muito trabalho. Ele disse que fazia em dois minutos. Uma das meninas falou: "Mentira, ele é supervaidoso, leva meia hora no banheiro. Sou irmã dele. Tô pronta muito antes!". O guri estava muito mais bonito do que todo os guris na aula. Entrevistando meninos numa escola para uma pesquisa minha, um deles me disse que não gosta de fazer Educação Física antes do recreio. "A gente sai todo suado, depois quero estar bonito no recreio e estou todo suado e vermelho. Isso é muito errado. Digo isso e os outros guris ficam falando que eu sou bicha. Não, eu quero estar bem ajeitando para namorar as meninas", disse ele, mais ou menos assim. Achei uma observação tão inteligente, era um menino de 14 anos. Então por que não esse atravessamento?
Como você sugere que funcione a repartição das tarefas domésticas?
Eu teria um monte de exemplos. Tenho percebido, cada vez mais, que as meninas estrilam com isso e obrigam a divisão de tarefas. É uma conversa frequente: "Chegamos da escola, eu e meu irmão, e não tenho a obrigação de fazer esse monte de coisa. Temos que fazer as coisas em conjunto. Não pode ser eu ficar em casa e ele sair correndo porta afora a brincar com os outros". Tem havido um número cada vez maior de meninas que verbaliza o seu desconforto. Isso tem que ser dividido, sim. Qualquer sociedade minimamente evoluída tem isso. Morei um ano e meio em Nova York e fiquei impressionado com a quantidade de homens que levava as roupas da família inteira, inclusive as calcinhas da mulher, para a lavanderia. Às vezes, o homem ficava um tempo, depois vinha a mulher e o substituía. Esse homem estava realizando uma clara atividade feminina. Não tenho nenhuma dúvida de que esse é um ponto que todas as famílias deveriam estimular. O trabalho doméstico tem que ser dividido por todos.
Se o menino quiser usar rosa, tudo bem? Se ele não usa rosa porque é "cor de menina", tudo bem?
Tenho várias camisas cor-de-rosa muito bonitas, particularmente acho que fico muito bem, mas não é uma questão de forçar. Acho que se deve levantar essa possibilidade: por que você não usa uma camisa rosa? Por que você não usa uma camiseta de outra cor? Tenho visto, nas escolas e nas ruas, que os meninos de todas as classes estão usando camisetas que não têm a barra reta, é arredondada. Na frente, ela é um pouquinho mais para baixo, nos lados ela acompanha um pouco a curva da perna e atrás é um pouquinho mais pra baixo, tem um leve movimento, e tem um decote mais profundo, outro detalhe típico de mulher. Nada disso eu acho que transforma o sujeito em gay. Aliás, 99% dos meninos que vi usam aquilo de modo absolutamente hétero e masculino. Com uma criança pequena, isso tem que ser conversado: você não acha que fica bonito? Não quer experimentar? Mas sem forçar nada. A boa educação é aquela de pais e mães que mostram que esse limite do masculino e do feminino não é uma fronteira que não se possa atravessar, ela vai produzir talvez um menino que é um grande chef de cozinha no futuro, em vez de mais um advogado desempregado, e um menina engenheira, e não mais uma menina pedagoga. A profissão mais escolhida pelos meninos é a advocacia, e, pelas meninas, a pedagogia. Mostrar que se pode atravessar isso é uma atitude inteligente também, mas reconheço que tem gente que tem dificuldade.
Que conselho geral você daria aos pais de crianças?
Não se deve fazer de conta de que se aprende sobre gênero e sexualidade automaticamente. A gente deve conversar sobre isso. Trabalho em educação, e o que mais a minha linha produz são estratégias pedagógicas pra conversar isso em sala de aula. A sociedade brasileira já assumiu que divulga muito isso. Não é possível ter novelas em que duas meninas se beijam, uma menina é trans, há casais de homens e imaginar que tudo isso pode acontecer sem uma conversa na escola ou na família. Mas essa conversa tem que ser respeitosa, sem ficar dizendo "está errado", "está certo". Essas coisas de errado e certo, nesse tema, são muito móveis. Errado é bater na mulher, isso é violência doméstica e tem lei contra isso. Mas não tem nenhuma lei que diga que um homem não pode se vestir de mulher para além do Carnaval ou que eu não possa gostar de fazer as unhas.