Azul ou rosa? Polêmica antes mesmo de ser empossada, a pastora e ministra Damares Alves, titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro (PSL), começou o ano viralizando na internet em um vídeo no qual pronunciava aquela que certamente será uma das frases inesquecíveis de seu mandato: “Uma nova era começou no Brasil: menino veste azul, menina veste rosa”. As redes sociais entraram em convulsão com manifestações favoráveis e contrárias.
Passado, pelo menos, o auge do rebuliço, mantém-se a validade da discussão: qual a influência dos estereótipos de gênero na criação e no desenvolvimento de meninos e meninas? GaúchaZH ouviu a opinião de duas famílias a respeito do tema, questionando-as além da simples escolha de cores na hora de vestir os filhos, e um especialista, o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Seffner, coordenador da linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Para Seffner, a criança tem o direito de escolher, com a supervisão e a orientação dos adultos.
– Experimentações enriquecem. Perceber que eu posso ser um homem gostando de algumas coisas do universo feminino estabelece uma possibilidade cognitiva maior para os meninos – opina o docente. – A boa educação é aquela de pais e mães que mostram que o limite do masculino e do feminino não é uma fronteira que não se possa atravessar.
“Sempre mostramos tudo e a deixamos livre para escolher”
“Não sei de onde surgiu o interesse da Rafaela: de um ano e meio até quase três, foi a época dos super-heróis. Ela vibrava quando via o Homem-Aranha. Ganhou um monte de bonecas e não deu a menor bola, e eu morria de vergonha.
Na adaptação na escolinha, ela levou um boneco pequeno de crochê do Homem-Aranha, como objeto de transição. Por um mês, ficou com ele na mão o tempo todo, não deixava ninguém tocar. Aí começou a pedir outros heróis, Homem de Ferro, Batman, e roupas de super-herói. Ano passado, ela tinha dois anos e usava camiseta de seis anos, que era o menor número que tinha. Ficava claramente muito grande, mas ela adorava, estava bem faceira. Me pediu uma vez um biquíni de Homem-Aranha. ‘Amor, biquíni vai ser difícil’, falei. Meu marido encontrou vestidos do Homem-Aranha e do Batman. Ela amou, dormia de vestido, ia para a aula de vestido. O Dia da Fantasia era segunda, e ela ia fantasiada o tempo inteiro. Foi se interessar por princesas no final do ano passado.
Na escola, tem duas grandes mesas: uma com os meninos montando quebra-cabeças e torres, e na outra as meninas trocando fraldas das bonecas. Várias vezes, cheguei e a encontrei brincando com os guris. A Rafa queria carrinhos. O tio deu um carro de bombeiros, e ela vibrou. Não vou dizer que eu não estranhava. Minha mãe estava achando horrível. Meu marido achava normal porque ele foi uma criança que brincou de boneca muito tempo e adorava se fantasiar.
Ela criou uma turminha com as meninas faz uns sete, oito meses. Agora ela gosta de bonecas, mas não brinca de mãe. “Sua filha está bem, não tem que trocar de fraldas?”, pergunto. “Ela não é minha filha, mamãe, ela é uma boneca”, ela responde. Está na fase da Baby Alive, que fala, faz cocô e xixi. Leva-a para almoçar, ao supermercado, à escola. Ela deixou os super-heróis um pouco de lado. De Natal, quis uma camiseta da Mulher-Maravilha para mim e outra para ela, iguais. Para o pai, escolhi o Super-Homem. Ela gosta de heroínas, das Meninas Superpoderosas, e gosta de princesas também, como a Frozen e a Moana. Ela anda com uma coroa de princesa.
Foi uma coisa muito natural, ela tem um desenvolvimento normal. Não interferiu nada essa escolha por brinquedos mais masculinos. Ela sempre foi muito criativa. Se (a roupa) não tem um desenho, um tema, ela não gosta. Outro dia ela ganhou um biquíni completamente liso e não deu nem bola. Na escola, estão agora em uma espécie de colônia de férias. Teve o baile das princesas e dos heróis, e ela foi de bruxa. Ao baile gaudério, de Batman. Nas reuniões de pais, sou das mais velhas e vejo que existe uma mentalidade fechada, de pessoas mais jovens do que eu, para esse tipo de coisa. Queria perguntar: por que baile de princesas e heróis? Mas entendi, pela convivência com as outras mães, que seria melhor seguir o padrão tradicional para ter menos incomodação e confronto. Tem tanta coisa mais importante para se preocupar com o seu filho. A educação é a coisa mais difícil. Dar comida, levar para a escola, dar banho são as coisas mais fáceis, mas educar... Você tem que educar pensando nas diferenças, mostrando que escolher uma coisa diferente não é ruim. Ela tem que entender que existe um universo de brincadeiras e de cores e que pode escolher qualquer uma.
Um tempo atrás, ela disse: ‘Rosa é cor de menina, azul é de menino’. Expliquei que tem mais coisa rosa para menina, mas ela pode usar rosa, azul, amarelo, roxo. Sempre mostramos tudo e a deixamos livre para escolher, sem aquilo de ‘não pode porque vai ficar masculinizada’. Ela não ficou mais bruta por brincar de carrinho. É feminina, doce, amorosa, criativa, livre para suas escolhas, mas com limite de consumo, tem datas para ganhar presentes. Agora, tem uma escova de dentes do Hulk em verde-limão e roxo.”
Raquel Medeiros, 45 anos, artesã, e Fabio Castilhos, 46, analista de sistemas, são pais de Rafaela, três anos e 10 meses
“Não ofereço brinquedos femininos. Boneca é de menina”
“O enxoval do Davi foi quase todo amarelo e azul. Ele cresceu usando azul. Não acho legal menino usar rosa, e aqui nós não usamos. Quando ele crescer, estará livre pra fazer o que quiser. Acho que os brinquedos deveriam ser mais coloridos, já deixei de comprar um fogão para ele brincar pois era um rosa-chiclete, e ele mesmo não queria aquela cor. Mas já comprei panelinhas de comidinha para ele.
Acho que é uma referência da minha criação. Cresci no meu quartinho rosa, com rosa até no teto, e o meu irmão, no azul. Para mim, vem muito forte essa referência feminina. Nunca saí de casa pensando ‘que legal, vou comprar uma blusinha rosa para o Davi’. Apesar de que, se eu estivesse numa loja e achasse uma roupa legal, a cor rosa poderia entrar. Por coincidência, ele ganhou de presente uma bermudinha de surfista predominantemente rosa. Não quis: ‘É de menina’, falou. ‘Filho, não é de menina, a cor é diferente. É a cor da Peppa!’ Tentei umas quatro vezes. ‘Não gosto, é feio.’ Ela está aqui nas roupinhas para eu passar para a frente, não vai ser usada. Acho que ele acabou pegando isso de mim, sem eu falar. Apesar de ele não usar, tanto pela minha criação tanto por eu nunca ter comprado, nunca falei ‘rosa é de menina’. Ele absorveu, também na escola.
O pai dele é mais tradicional, mais fechado. Ele não gostou da bermuda, mas também não fala ‘não vai usar’. Não tentaria como eu tentei. Vídeos com bonequinhas no YouTube, às vezes, ele tira (da frente do Davi). Brincar de boneca, ele não deixaria, tiraria mesmo. Não com brutalidade, mas a criação dele foi mais forte do que a minha. Minha sogra ensinava ele a ajudá-la. Se meu sogro chegasse em casa e meu marido a estivesse ajudando a varrer o chão, meu sogro tirava a vassoura da mão dele e falava que isso não era coisa de homem. Era bem mais machista. Aqui a gente brinca, o Davi pega a minha vassoura, eu digo: ‘Você tem que ajudar a mamãe’.
Não ofereço brinquedos femininos. Se ele brincasse de boneca, eu acharia estranho. Já está enraizado em mim, apesar de tentar mudar. Boneca é de menina, apesar de ele pegar os ursinhos e chamar de filho. Eu acharia estranho se o visse brincando com uma bonequinha. Queria que o meu marido fosse até mais aberto para isso, para a gente não ter essa divisão dentro de casa, porque daí já colho os frutos de uma criação machista da parte dele e da minha também. Mas ainda é uma coisa mais instintiva, sabe? Aprendi isso na primeira infância, ‘ah, isso é de menina’. Aí já fico pensando: ‘Meu Deus, o que vão achar?’. Nunca vi ele com uma boneca, mas já vi ele nanando o ursinho. Acho que é a visão da boneca que me deixaria mais desconfortável, associando ele a uma menina. Mas isso é uma coisa que, com certeza, está sendo trabalhada. O que penso hoje já está mais aberto do que eu pensava um ano atrás.
As referências que damos são muito mais do universo masculino do que do feminino. Crio ele como menino, biologicamente ele é um menino, mas se ele chegar a uma idade em que se interessar por alguém do mesmo sexo, por mim ok. Não vou achar legal porque minha criação ainda é mais tradicional, conservadora, mas nunca colocaria meu filho para fora. O amor está acima disso. É uma coisa que ele vai descobrir, não que eu vá deixar em aberto para ele escolher entre duas opções. Se ele descobrir isso, quem ele quiser trazer aqui vai ser bem-vindo. Mas a criação dele é de menino mesmo.
Acho que a minha geração, comparada com a do meu pai, está num processo de transição, no meio do caminho. Não sou tão conservadora igual a ele. Penso que somos um casal em transição entre o que eram nossos pais e o que a gente ainda quer ser, para melhorar. Quero um segundo filho, talvez para o ano que vem. Se vier uma menina, vai dormir com ele no mesmo quarto. Estou pensando já num quarto bem colorido, com floresta. Metade azul e metade rosa não vai dar!
Se ele escolher, vai poder usar rosa agora. O pai não iria contra, não quer uma criação opressora. Tem uma justificativa que faça sentido? Não. Então como é que a gente vai falar ‘não’? Tem também a questão de tudo estar ligado às cores rosa e azul. Você não tem tantas opções assim.”
Caroline de Paula Lima Miranda, 31 anos, publicitária, e Giovane dos Reis Miranda, 32 anos, advogado, são pais de Davi, quatro anos e meio.