Quando o governo de Michel Temer mal engatinhava, fui dos primeiros jornalistas brasileiros a alertar para o crescimento da influência das Forças Armadas na política brasileira. Na época, esse era um fenômeno ainda oculto, restrito aos bastidores do poder.
Fui questionado e acusado de conspirador. De fato, apenas cumpria com o meu dever de informar e de analisar. Eu tinha informações confiáveis de Brasília e por isso não tive dúvidas ao afirmar que o impeachment de Dilma Rousseff teve o aval dos principais generais brasileiros e que inaugura-se ali uma nova era, verde-oliva por dentro, traje e gravata por fora. Os contornos exatos desse novo teatro de operações seriam definidos depois.
Um país com autoridade esfacelada recebeu de braços abertos um ex-capitão obscuro, chamado de “mau militar” pelo ex-presidente Ernesto Geisel. Com Bolsonaro, generais e coronéis, a imensa maioria já na reserva, saíram dos bastidores para ocupar o centro dos holofotes, em postos-chave da Nação. Mas mantendo antes de seus nomes suas patentes militares.
Há uma diferença entre a existência de militares no poder e o exercício de um poder militar. Mesmo que, institucionalmente, as Forças Armadas não façam parte do governo, a presença de seus integrantes em altos cargos políticos acaba impactando no governo e na percepção dos brasileiros. E isso, em uma perspectiva institucional de perenidade, não é bom para o Exército, para a Marinha e para a Aeronáutica, que cumprem de forma exemplar, desde e redemocratização, o seu papel constitucional, depois do gigantesco desgaste gerado pela repressão protagonizada pelo regime militar inaugurado em 1964.
Agora, a mesma armadilha parece ter funcionado de novo. A repulsa à esquerda empurrou os militares para um palco que não é deles – o das artimanhas, negociações, conchavos e disputas de poder, que no mundo civil são bem mais complexas do que a dicotomia amigo-inimigo. Outra consequência inexorável dessa dinâmica é o contrabando de debates políticos em temperatura mais elevada para dentro dos quarteis, onde sempre houve pontos de vista diferentes, mas que invariavelmente se amalgamavam de forma sólida e monolítica, modulados pela disciplina e pela hierarquia. Seria um erro falar em cisão, mas também seria não mencionar, em 2021, a palavra divisão.
Foram anos recuperando a imagem arranhada pela tortura e pelos exageros dos anos de chumbo. O surgimento de uma nova geração de oficiais democratas e altamente capacitados permitia afirmar que a vacina tinha funcionado. Mas faltou a segunda dose. Hoje, um general está à frente do Ministério da Saúde durante o maior fiasco sanitário da história do Brasil, que tem filas das UTIs e mortos empilhados nos cemitérios, vítimas, em boa parte, de um presidente negacionista e de comportamento errático. Uma conta alta, dolorida e cruel, que será cobrada para sempre “dos militares”, numerosos integrantes de um governo que, certamente, será julgado pela História.